CARLITOS ESTÁ SEM PANCAKE: A insegurança pública na crônica da morte não anunciada de um artista de rua

Esta reportagem foi escrita para o jornal Correio da Bahia, em 2005. No dia 3 de janeiro de 2010, o personagem principal dela, Gildenor, foi assassinado com 10 tiros no Bar de Pelé, em Matatu de Brotas, a poucos metros de casa. Ele pediu uma cerveja depois do uma noite inteira de trabalho e nem chegou a beber o primeiro gole. Foi alvejado por 10 tiros no peito e cabeça disparados por seis homens. A suspeita é de que os traficantes quiseram calar a voz e o talento do Chaplin do skate. Até hoje, sete anos depois, nada foi investigado a respeito.rnrn rnrnQuando o Chaplin do skate, um dos artistas de rua mais longevos de Salvador, com mais de duas décadas fazendo acrobacias e pigarreando labaredas, avisa que planeja uma aposentadoria é sinal de que há algo de errado com os tempos modernos. Seria como dona Canô, de repente, abrir mão de suas novenas, ou o maestro Fred Dantas renegar frevos e dobrados e ainda o professor Roberto Albergaria resolver abdicar de dos seus neologismos lambuzados de deboche e desdenhosos de erudição. Pois o Chaplin do skate, uma lenda noturna nômade entre a boemia da Barra, Rio Vermelho e Pituba, acha que está na hora de pendurar o paletó, esquecer a bicicleta de mil malabarismos e o gosto ferruginoso do querosene que sempre leva à boca. Tudo que ele mais gostaria era de um emprego formal. Aos 50 anos, sonha com a carteira assinada como garçom.rnrnDefinitivamente, as coisas não devem estar nada boas para o Chaplin do skate decidir que seu último ato está próximo. “Chaplin do skate” é uma denominação arbitrária adotada pela imprensa momesca logo que ele começou a fazer estripulias pelos circuitos de carnaval de Salvador apoiado na tábua estreita com quatro rodinhas. Ele também pode ser chamado de o Carlitos da Barra, ou o Charles Chaplin engolidor de fogo. Seu trabalho itinerante é conhecido há 20 anos dos clientes de bares e restaurantes que se encantam com a técnica para cuspir chamas, uma nova versão incandescente de luzes da cidade.rnrnPor detrás da maquiagem cada dia mais escassa, entretanto, Gildenor Ferreira de Oliveira, pai de três filhos, não está se sentindo mais tão prestigiado. “Ultimamente, o negócio tá fraco, não tá mais dando, não”, entrega-se o artista, sem demonstrar rancor, apenas um pouco de desilusão. Consegue, em média, 20 reais por noite, de quinta a domingo, o mínimo necessário para sobreviver, ao lado da companheira dos últimos cinco anos, Elissandra. “Tem muita gente concorrendo e os clientes não são mais tão generosos”, aponta.rnrn rnrnDesarmado e lamuriosornrnHá mais de dois meses, a bicicleta está parada por causa de um banal pneu furado (“a câmara também estourou”) que ele não tem dinheiro para consertar. O skate, nem se fala. Desde que foi esmagado por um carro, há mais de um ano, não há qualquer possibilidade financeira de compra de um novo. “Tô sem arma de trabalho. Tô desarmado”, lamenta Gildenor.rnrnDo seu arsenal artístico, resiste apenas o querosene, que funciona como combustível de seu sopro de dragão. “O médico já disse que eu posso ter um câncer de garganta ou de pele, mas já tem 20 anos que faço isso e não tenho nada”, ameniza ele, que anda cuspindo fogo por aí, mas é incapaz de dizer um só palavrão. Se o querosene não tem o aroma e nem o sabor dos melhores, o mesmo não pode ser dito sobre a aguardente de marca 51 que o nosso Chaplin acrobata ministra a goladas. Toma três ou quatro doses todo dia e garante que se tiver o litro inteiro ele também bebe. Há algo de muito mais melancólico nesse Carlitos bicombustível do que o original que fazia chorar contracenando com aquele garotinho mudo em cenas em preto e branco.rnrn rnrnFalência negrarnrnNa rua Churupita, uma viela de acesso tortuoso, no Matatu de Brotas, a fachada pintada de preto anuncia o Bar do Chaplin. É a entrada da residência do artista, que já se aventurou como micro-empresário do ramo do entretenimento de baixo custo. O estabelecimento, ele faz questão de justificar antes de qualquer pergunta, “faliu”. Só que uma conversa daqui e outra dali, ele explica que resolveu fechar por causa de freqüentadores de mente aberta e pulmões turbinados de seus próprios delírios gasosos. Para evitar problemas futuros com a polícia e uma classificação como boca-de-fumo, ele preferiu abandonar o negócio.rnrnO mesmo tipo de abandono discreto e silencioso que está planejando agora. Desde que se entende por gente, quando era adolescente, em Neópolis, Sergipe, passou a ganhar uns trocados com as artimanhas mambembes. Na época da febre do conjunto Secos e Molhados, por 1973, os amigos se fantasiaram no carnaval com maquiagens berrantes. Ele apelou para o ídolo do cinema, aquele que fora o grande ditador dos sorrisos em sua infância. Passou porcelana de prato para embranquecer o rosto e pintou um bigodinho com carvão mesmo. Virou um sósia.rnrnEm 1976, quando se mudou para o bairro de Cosme de Farias, em Salvador, foi frentista, gari, balconista e garçom até que, desempregado, percebeu que o trabalho de sua vida estava mesmo naqueles saltos com bicicleta, naquela pirotecnia de encantar qualquer bebum.rnrnCriou os três filhos sob a quentura do querosene e do smoking, mas sempre com o frescor da realização pessoal. Agora, pensa em arrumar uma sinecura como garçom para largar desta vida. Também pudera, a bicicleta está parada há tanto tempo por causa de um mísero pneu furado e ele tem que ir caminhando por toda a orla para poder encontrar com uma clientela a cada dia menos generosa.rnrn rnrnPastor de AlmasrnrnFã do cineasta e intérprete de películas como Pastor de Almas e O Circo, Gildenor sequer lembra o nome de filmes de Carlitos que tenha assistido. Na verdade, ele só tem a inspiração mesmo na questão visual. “Não sou ator, não tenho vocação para isso. Não tenho cultura para enfrentar um teste ou até mesmo decorar texto”, admite ele, que estudou até a 7ª série. “Ficaria contente com um empregozinho de garçom”.rnrnComo já se viu por suas preferências etílicas, ficar de cara limpa só deve ser uma de suas prioridades na interpretação literal. Porque, no sentido figurado, ficar de cara limpa não é bem o que ele gosta de fazer em suas diárias fugas alcoólicas. A companheira Elissandra, que é mais nova do que ele, entrega que ele anda dormindo muito durante o dia, ao contrário de quando ia até a praia fazer uns exercícios e aprimorar a forma.rnrnHá uns dois meses, Chaplin do skate está sem pancake (ou pó compacto), está sem o lápis preto de sobrancelha que usa para desenhar os pelos sobre os lábios (“porque se colocar bigode postiço, ele queima”). Não tem dinheiro para comprar tudo isso. Ele acha que a descaracterização está até prejudicando o trabalho, as pessoas não têm muita motivação para pagar um cachezinho. Em prol de um bom desempenho cênico, pede R$10 para comprar maquiagem. “Se não der para o pancake, eu compro pasta d´água mesmo”, consola-se. No fim, aceita seis vales-transporte para recuperar a cara pintada, algo que no câmbio negro do escambo ilegal pode valer em torno de R$9.rnrnMesmo assim, avisa: vai prosseguir apenas até assinar a carteira como garçom. Se até Chaplin do skate – ou Carlitos equilibrista, o que preferir – quer desistir é porque há algo de muito errado com esses tempos modernos.rnrn rnrnParticipe do debate sobre segurança pública pelo www.twitter.com/opabloreis

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