Em 2017, uma pedra de esmeralda de mais de 360kg virou alvo de disputa judicial entre brasileiros e americanos. O minério foi extraído no garimpo da Carnaíba, em Pindobaçu, norte da Bahia. A história parecia com a da Esmeralda Bahia, encontrada em 2001, com 380kg, que chegou a ser avaliada em 1 bilhão de reais.
O atual presidente da Assembleia Legislativa da Bahia, Adolfo Menezes, nascido na região e negociante do ramo, desdenha dos valores e da preciosidade do achado. Ele me contou que esmeralda só se mede em quilates e quando chega a quilos é a chamada ganga, cujo uso é apenas para enfeite. “Aquela pedra foi vendida por um primo meu, por não mais do que R$10 mil”.
Em 2007, ouvindo histórias sobre os garimpeiros, consegui convencer a chefia do Correio da Bahia a viajar para lá para fazer uma reportagem. A condição deles era que eu fosse sozinho, porque a reduzida equipe de fotógrafos não podia ser desfalcada por dias em Salvador. Com uma máquina semi amadora, de precários 16 megapixels de definição, fui de ônibus para o que ainda não sabia que seria a aventura mais melancólica que eu vivi.
CAÇADORES DE ESMERALDAS
Na saga dos garimpeiros da região norte da Bahia, riqueza instantânea e falência anunciada, tragédias e doenças, cobiça e poesia
O bom garimpeiro também tem que ser de pedra. Não há nenhuma cartilha dizendo essa máxima, mas basta observar de perto a saga dos desbravadores de minas na Serra da Carnaíba, região norte da Bahia, para reconhecer a dureza dos rostos, os olhos petrificados em busca de uma fortuna que teima em não brotar da rocha. Estão buscando a riqueza, na forma de pepitas verdes de esmeralda, desde 1963, quando o pioneiro descobriu as jazidas nas proximidades de Campo Formoso. Em volta daquelas pedras, que são vendidas até no meio da praça, uma rede de intrigas e cobiça que cega os homens e leva a uma odisséia de ilusões e morte no garimpo. O bom garimpeiro também tem que ser de pedra porque precisa resistir a uma infinidade de provações: a incerteza pelo sucesso, os riscos de sua jornada insegura e até a solidão silenciosa de quem precisa passar metade de um dia debaixo de toneladas de rocha maciça, à espera de um brilho verde que teima em não surgir no monolito.
PEDRA SOBRE PEDRA
A busca pelas esmeraldas na Serra da Carnaíba, norte da Bahia, apresenta um enredo de intrigas, morte e cobiça
O garimpeiro coloca a esmeralda bruta no canto da mão esquerda curvada para verificar a qualidade da pedra. Não pode ter rachaduras, precisa ter a transparência de um verde intenso, sem tons de amarelo, nem azul, sem manchas. Vai rodando a pepita lentamente para colocar sob a claridade e em volta dele, na Serra da Carnaíba, tudo gira em função daquela promessa de riqueza. Os catadores de bagulho, chamados quijilas, estão em seus postos periféricos, recolhendo as rochas descartadas numa mina para tentar ali algum material de qualidade duvidosa. Os atravessadores estão na praça de Campo Formoso, tentando iludir algum comprador leigo com o brilho chamuscado de joia aparente.
No instante em que a pedra segue seu eixo de rotação, em que a palma da mão continua a rodar investigando o quilate, mata-se e morre-se por uma fortuna instantânea. Deslealdades entre sócios, traições entre parentes fazem parte do jogo de poder e cobiça. O céu desmorona sobre cabeças, é uma mina desabando e matando em tragédias que datam desde a descoberta das jazidas, em 1963.
A luz do sol explode certeira na pedra, que àquela altura já pode ser considerada uma gema, e o raio se estilhaça em uma claridade verde do outro lado. É caleidoscópio de riqueza, um poema encontrado pela metade no meio da lama do garimpo e que precisa ser lapidado para virar obra-prima. Por causa daquela descoberta, muitos morreram, alguns enriqueceram e quase sempre viram a própria derrota depois da primeira fortuna. Toda joia é a riqueza e a desgraça de um garimpeiro.
A Serra da Carnaíba tem 970 metros de altitude e fica no sertão baiano, a 200 km de Juazeiro, vizinha a Senhor do Bonfim. A exploração de minérios começou em 1963, depois de um sonho revelador de uma lavradora. A visão da riqueza originou uma espécie de vila, com quase 10 mil habitantes, onde os homens circulam de galochas, capacetes plásticos e roupas enlameadas. É lá o eldorado onde essa história vai estacionar.
A viagem
Do centro de Campo Formoso até o coração de uma mina são 48 quilômetros e um continente inteiro de distância. Os veículos oficiais dos tropeiros das esmeraldas, Veraneios com, no mínimo, três décadas mais de morte do que de vida, percorrem o trajeto em bamboleantes 90 minutos. As marinetes que levam até o sonho verde conduzem garimpeiros, compradores ou atravessadores, sempre em número de 10 passageiros, porque a ignição só é acionada com a lotação máxima.
Quando você senta no banco traseiro para empreender essa jornada, vai se divertindo com aqueles pinotes de carro indomável e toda aquela poeira emanada do forro ao menor toque, e todos os pontos de corrosão de ferrugem e você, ali, ansioso pela chegada, e ao mesmo tempo com um sorriso discreto de quem está achando esse ingresso no mundo caipira muito surreal. E depois dos primeiros 10 minutos de apreciação das condições jurássicas do automóvel você já quer admirar a paisagem e passa a ver formações rochosas cobertas pelo verde recente vegetal, paredões imponentes que se abrem para a passagem de um rio, que lá na frente se revelará como o leito das esmeraldas.
Enfim, ao descer do carro, você tem a certeza de que foi-se o tempo de pujança e de que Gildásio, o sempre sorridente homem ao volante da Veraneio, está dirigindo para o lado B do garimpo. Só que antes dessa viagem, você passou por uma praça, o santuário das negociações das minas, um shopping a céu aberto, sem stands, e sem caixas registradoras, onde todo o tipo de transação é feito. É sábado, mas parece dia útil, um centro de compras e ilusões para os leigos no mercado milionário das esmeraldas. Um fim de semana não significa descanso para quem precisa lucrar o máximo com as pequenas gemas que custam a vida dos desbravadores do garimpo.
A feira na praça
A praça Luiz Viana, em Campo Formoso, vira a feira de preciosidades e falsidades. Negociantes de todos os tipos e escrúpulos buscam os clientes de qualquer pedra. Estes elevam uma pepita em direção ao sol, com um movimento estudado do polegar e o indicador, fecham o olho e deixam o outro admirando o brilho, tentando diagnosticar o grau de pureza, a qualidade desta ou daquela gema.
Eles nem precisam medir alguém da cabeça aos pés para reconhecer a (in)capacidade de diferenciar um cristal de uma pedra de ametista. Bastam olhar para esse movimento de análise à luz do sol para saber quem está realmente investigando e quem está blefando. É a versão mineradora da expressão usada no futebol para diferenciar um craque “no arriar das malas” – com a diferença que isso é realmente impossível no futebol, mas infalível na feira de pedras.
Desprovido dessas artimanhas, um tolo entrega o ouro e vira um cliente precioso para um espertalhão. Um repórter pode ser abordado por um vendedor para quem o diálogo certo pode significar o mais rentável dos negócios:
– E aí, bacana, não vai levar essa pedra? Te faço por apenas 100 reais – oferece, retirando um pedaço sólido cor de musgo, um pouco maior do que uma bola de ping-pong, do meio de quase cinco quilos de refugo do garimpo.
– Não, obrigado, não entendo muito desse negócio…
– Por isso mesmo. Se eu percebesse que você entende, poderia cobrar até um pouco mais, uns 300 reais…
– Só que eu não sei dizer a você se a pedra vale isso mesmo, por isso prefiro não comprar nada.
– Rapaz, depois de bem lapidada, você pode vender por até uns 500 paus – insiste, quase certo de levar a uma tautologia onde a venda se torne irrecusável.
– Eu agradeço, mas não tenho interesse – é a última palavra.
E menos de cinco minutos depois, já está oferecendo a mesma peça a um conterrâneo, que diz logo de cara não pagar mais do que 10 reais por aquele “bagulho”. O vendedor ainda tenta argumentar que 30 reais é um bom preço, mas vende por R$ 10 mesmo.
Aqui o comércio fica bom ou fica ruim sem uma sazonalidade racional. Telma, de 50 anos, filha do legendário Doquito, se vira na praça Luiz Viana e quando o faturamento está muito baixo viaja até Salvador, fazendo o comércio de mascate entre os clientes do Pelourinho. Edvanilson Batista Júnior, 37 anos, vende cristal de ametista e topázio.
Na praça, conversas giram sobre assuntos correlatos: quem se destacou no garimpo durante a semana; A cotação de uma ou outra joia; O desfalque que alguém deu ou sofreu. Em bancos de cimento, todo tipo de cristal se confunde com joias. Há também os que estacionam os carros (um Escort ou um Chevette) no entorno para abrir os porta-malas e virar vitrine.
Telma coloca na banca quartzo citrino amarelo, as ametistas dela estão fracas, quatro pedras por R$20. Uma garrafa de rum Montilla cheia de rutilo de cabelo, uma coruja esculpida em maracaxeta de esmeralda, pedras de quartzo rosa e estanho. Não se sabe se as pedras representam isso mesmo ou se todas essas expressões são jogadas numa verborragia de vendedor apenas para impressionar. Estamos na terra das esmeraldas e nem tudo o que reluz nessa história é realmente uma jóia.
ELDORADO DE ILUSÕES
A Serra da Carnaíba concentra o desejo por riqueza e a desgraça inerentes ao garimpo
Carnaíba de Cima, um distrito da cidade de Pindobaçu, não passa da geometria de meia dúzia de ruas, coalhadas de pequenos estabelecimentos comerciais, com aspecto de sujeira aos olhos de um urbanista de metrópole, casas erguidas com rocha e entulho e uma movimentação de feira. É o comércio da pedra verde, uma imposição local do mesmo jeito que você vai encontrar ambulantes oferecendo fitas do Senhor do Bonfim na Colina Sagrada, em Salvador, ou casas de chá seduzindo clientes por chocolate, em Gramado, ou coffee shops ofertando cepas de maconha com diferentes concentrações de THC, em Amsterdam. A diferença é que, estando ali, você já é tratado como comprador compulsório, não há chance de você estar apenas passeando. “Venha ver essa belezura, olhe que pedra maravilhosa”, adianta-se um dos quatro que debatem calorosamente sobre o valor de suas chamejantes pepitas.
O outro já puxa o jovem com máquina fotográfica na mão e aspecto geral de turista. Tenta convencer que R$300 é uma bagatela para aquela preciosidade. Não precisa muito para o quarteto disputar entre si as qualidades de suas peças, suas bolinhas brutas que podem muito bem ter sido refugo do garimpo, mas que aos olhos do leigo viram oportunidade.
Na Carnaíba, cada porta expõe uma miudeza que remete ao trabalho nas minas, embora os micro-empresários não tenham lucros a contabilizar. Todos dizem que a fase não é das melhores, que já foi o tempo do dinheiro e os “serviços” parecem estar secando. Só que no momento de ostentação, André Lopes, o Dezo, mais vaidoso do que a média, deixa passar que vende até R$10 mil em uma semana.
Naquele entre muitos botecos sem placa, resumido a uma porta e um vão pintado em azul desbotado, com paredes adornadas por três ou quatro cartazes de cerveja com mulheres seminuas que nunca vão passar por ali (nem ao menos se o sortudo da mina pagar o peso delas em ouro), a proprietária, dona Maria, com seus 60 anos, oferece uísque para combater o frio que se aproxima. Para ela, a melhor marca é “aquela segunda garrafa da primeira prateleira”, apontando para um vidro escrito Old Eight. Dona Maria está feliz, mesmo com o cliente pedindo nada mais do que uma cerveja. Afinal, é um cliente, coisa quase tão rara por ali, quanto a moça de biquíni amarelo e sorriso branco no cartaz de cerveja.
Na despedida, uma pergunta ao garçom:
– O comércio aqui tá bom?
– Pra cachaça, não tá ruim, não.
Ele ainda completa, com a franqueza de um taquígrafo de tribunal: “Garimpeiro gosta de tomar um porrezinho de vez em quando”.
Riqueza e desgraça
Garimpeiro é uma expressão genérica para designar operários das minas que se estendem por toda a serra, pontilhadas por buraquinhos que servem como porta de entrada para a riqueza ou para a desgraça. No Dicionário Aurélio, a primeira definição: “aquele que anda à cata de metais ou pedras preciosas”. Na gramática popular da Carnaíba, garimpeiro tem muitos significados. Pode ser o miserável que já ficou rico e agora corre contra o tempo para recuperar um pouco do dinheiro gasto em orgias etílicas, ou pode ser o pai de família que luta contra o tempo para levar o leite que Samuel Adrian vai precisar beber até o fim dos próximos parágrafos. Ou pode ser uma mistura das duas coisas.
Mas não é preciso recorrer a nenhum tipo de semântica para descobrir o significado de garimpeiro. Basta passear os olhos pelas ruas empoeiradas neste sábado interminável e ver homens de pele curtida, barba por fazer, capacetes sujos de uma tinta escura, roupa enlameada, botas de borracha encardidas até as canelas, passos apressados, e uma aparência de quem está mais em sintonia com a próxima detonação do que com a próxima refeição. Daquela vez, o estouro vai trazer pedra suficiente para garantir o alimento da família. Vai, sim, daquela vez, vai dar certo.
Estão sempre prontos a narrar a maldição da esmeralda, um inescapável destino aos que são bafejados pelo hálito da riqueza instantânea. Eles ficam milionários na rapidez com que dizem “essa mina é meu tesouro”, e podem ficar arruinados na velocidade que oferecem uma rodada do melhor whisky na melhor boate de Copacabana. Os garimpeiros são perdulários sem culpa e vivem pelo momento exato e, muitas vezes, único, em que conseguem escalar o ponto mais alto de uma sofrível restrição financeira, para depois descerem ao abismo da miséria com a competência de um medalhista olímpico em saltos ornamentais.
Falam sem remorsos aparentes, embora sempre estejam prometendo que na próxima oportunidade vão agir diferente, serão precavidos e previdentes. Só que estão falando para convencer a si mesmos. É possível que repitam tudo de novo, embora o mais provável seja que não tenham outra chance.
O ciclo de pujanças e falências é uma espécie de virose coletiva contra a qual ainda não inventaram uma vacina eficaz no garimpo. Funciona como nos tempos mais agudos das endemias de caxumba, quando se você não tivesse contraído pelo menos conhecia um vizinho que já teve. Nisso, veteranos e novatos são iguais sob o manto fantasmagórico da maldição. “Quem não faz dinheiro nesse garimpo?”, indaga retoricamente Emerson da Silva Vasconcelos, com mais da metade dos seus 19 anos gotejando suor naquela serra. E logo em seguida ele parece responder a si próprio com a lógica mais fácil de ser entendida em toda a Carnaíba. “A questão é que garimpeiro não segura dinheiro”.
Em menos de duas décadas de vida, Emerson já sentiu os dedos roçando em bolinhos de cédulas com ararinhas azuis, R$5 mil, R$10 mil passando por seus bolsos e sendo rapidamente investidos na indústria do hedonismo fácil: mulheres e bebidas. “Pode estar comendo ovo frito hoje, mas tem que curtir a vida”, empolga-se o rapaz, como se estivesse recriando o princípio do carpe diem em uma linguagem acessível a todos os vizinhos.
Na superfície
Um mundo subterrâneo é o escritório diário de centenas de trabalhadores com rostos sujos de fuligem, os narizes mal cobertos por pedaços de pano para minimizar a aspiração de pó, as cabeças apontadas para o inesperado. O que eles aparentam de rudes ao longe (com seus bonés em frangalhos e suas ferramentas pesadas para demolição), desmentem com a acolhida amistosa de operários da dureza. Parecem ter um orgulho da profissão e sentem um prazer genuíno de explicar cada etapa, cada instrumento, cada atalho para chegar ao brilho verde.
Ele não está ao alcance dos olhos, embaixo de toneladas de rocha, escondido por séculos de formações geológicas. Mais do que um prêmio para os sortudos, é um tesouro prometido para os desbravadores. E eles iniciam sua saga amarrando-se a um cinto de borracha sustentado por um cabo de aço e uma tábua, que chamam de “cavalo”. “Na hora que a gente monta no cavalo já está arriscando a vida”, dramatiza Elton Araújo Santos, sobrevivente há 15 anos dessa viagem ao centro da rocha, 28 anos de idade. Nos últimos dois anos, toda vez que ele desce vai pensando na jóia preciosa de sua própria lavra: Samuel Adrian.
E tudo é pedra e Samuel Adrian ao redor do esguio Elton, um compenetrado operário que o senso comum descreveria como sarará. É um dos autônomos do garimpo, que ganha exclusivamente o que consegue extrair. Outros colegas trabalham para o concessionário da mina, muitas vezes recebendo entre R$40 e R$50 por semana. Elton, que começou criança, catando o bagulho, tem experiência suficiente para sobreviver com a independência de aventureiro solo. Neste momento, ele está aguardando a subida de um colega da gruna (o nome dado ao túnel escavado) para receber um martelo, não a ferramenta tradicional, mas um instrumento que auxilia na perfuração da rocha para a consequente explosão.
Estopins da morte
São cinco a seis detonações em um dia. O martelo é uma espécie de britadeira para abrir fendas onde pequenas quantidades de explosivos são colocadas. O procedimento não obedece a protocolos rígidos de segurança e o risco de acidentes é uma bomba relógio sem cronômetro para disparar. Encaixam a banana de dinamite com alguns sacos de geladinho cheios de areia para fixar o explosivo. Colocam a espoleta e o estopim. Eles, os combatentes, se afastam o suficiente para não receber o impacto do entulho e nem rezam mais para tudo dar certo. Quando uma pedra grande cai, logo é chamada de boi. Cuidado com este boi grande aí; é o desafio ao destino.
Em 1969, seis anos depois do início da exploração de minérios na região, a fatalidade agiu mais rápido do que o instinto de sobrevivência. Na manhã de 19 de julho daquele ano, o luto dominou a serra com o primeiro desmoronamento registrado no garimpo. Era um sábado e o serviço de Mário Ferreira de Araújo, no primeiro trecho da Carnaíba, ficou totalmente soterrado. Os mortos chegaram a nove, número que não foi registrado em estatísticas oficiais, mas terminou noticiado à época do deslizamento.
O acidente fatal, atribuído aos métodos artesanais empregados na extração, não afastou os trabalhadores. Naquele mesmo ano, uma mina na região da Marota, às margens da estrada para o município de Pindobaçu, mostrou-se a jazida dos sonhos. Uma pedra de esmeralda com mais de cinco quilos foi descoberta e tornou o local famoso no mundo todo. A avidez terminou vencendo o sinistro.
Elton agora tem seu martelo e vai invadir a mina. Há quase dois anos é um homem convertido para uma religião evangélica por influência da mulher, Arenildes. De vez em quando, ele pensa que se tivesse descoberto essa forma de preencher a vida com adoração religiosa não teria gasto os 200 mil reais que calcula já ter colhido em preciosidades e desperdiçado em prazeres profanos. “Deus abriu meus olhos e vi que este mundo não tem nada a oferecer”, profetiza ele, que lá na frente vai lançar uma frase que não é praga, mas constatação: “o garimpeiro é sofredor, mas quando Deus mostra a bênção pra ele, não está preparado”.
Ele está pronto agora para voltar ao seu altar de umidade e penumbras. Como os corredores olímpicos contam suas vidas em segundos e os detentos por crimes hediondos contam seus tempos em anos, Elton precisa regular sua vida por semanas. Às sextas, tem a feira em Carnaíba e ele precisa garantir o leite do pequeno Samuel Adrian. Isso significa seis ou sete dias para vencer sua competição. Elton sonha com a família indissolúvel e, para isso, tudo depende do seu sucesso capaz de dissipar qualquer risco no matrimônio. O leite da casa já foi garantido nesta semana. Na próxima, não se sabe se vai haver sufoco, tudo parece depender de uma martelada certeira. É por isso que Elton caminha cercado de pedras de uma solidez evidente e da presença impalpável do pequeno Samuel Adrian.
MINA DO HEDONISMO
Apogeu do garimpo transforma a Carnaíba em mini Las Vegas, com cassinos e boates de luxo nacional
A descoberta de esmeraldas na Serra da Carnaíba data de 1963 e quase meio século depois os estudos geológicos apontam que pouco mais de 5% das jazidas foram exploradas. Métodos artesanais ainda são usados, onde a sorte é mais decisiva do que a ciência na hora da extração. Mesmo assim, 80% da produção de esmeraldas da Bahia tem origem nos garimpos desta região norte do estado, onde uma noite fria se torna bem pouco agradável.
Antes da descoberta das minas de cobiça, Carnaíba se isolava do mundo civilizado como um povoado para 500 habitantes, casas de palhoça ou de massapê abrigando gente que sobrevivia basicamente de uma agricultura rudimentar. Quando a terra passou a oferecer mais do que sementes, o crescimento populacional foi mais rápido do que um garimpeiro gago gritando “a-a-a-a-che-che-cha-cha-chamoss”. Entre 1965 e 1976, período considerado o apogeu do garimpo, os moradores alcançaram 30 mil, uma cidadezinha às voltas com as grunas.
No auge do garimpo, o eldorado ganhou fama como uma espécie de Las Vegas em miniatura, um centro de hedonismo nos rincões do norte da Bahia. Os cabarés eram frequentados por artistas de fama nacional (Amado Batista, Perla e José Augusto faziam shows) e por mulheres de passaporte internacional. Ficaram famosas as polacas – tão desejadas como as jóias -, que apresentavam as pernas nas boates do Robinho, Cinderela e da Jacinta, até no Inferninho, mas principalmente no Galeão dos Garimpeiros.
As “moças do Fachinetti”, uma alusão ao descendente de italianos Petrônio Fachinetti Cavachal, dono do Galeão, fizeram história entre garimpeiros. Elas podiam ter chegado de Salvador, do Rio de Janeiro, Fortaleza, Recife ou de cidades estrangeiras, mas em comum tinham a aura de irresistíveis. O Galeão começou a funcionar em 1969 e, durante os 15 anos seguintes, manteve o padrão de reunir a elite das garotas de cara companhia que se insinuavam para os novos-ricos da época. Na edição de 3 de maio de 1975, a revista Manchete, do Rio de Janeiro, dedicou longa reportagem sobre o requinte do lugar. O texto descreve, entre outros episódios, como Fachinetti fazia questão de inspecionar até o ensaio de strip tease das garotas, só para ter certeza de um show de qualidade. “É sábado, e a boate dos garimpeiros, com 40 mesas e 20 quartos, sistema de som internacional, se prepara para as grandes noitadas”.
Memórias de Valdir
Valdir César de Moraes, 76 anos, virou memorialista informal do garimpo. Suas frases recordam os últimos 40 anos na Carnaíba como se passassem em revista todo o ciclo de euforia e declínio. Seu Valdir também é um objeto de lendas entre os mais jovens, a principal delas é que colocou uma tonelada de esmeraldas junto com concreto e levantou uma parede num depósito. “Era um bagulho ruim que eu tinha lá”, desconversa o negociante, sem desmentir a informação corrente na cidade.
Foi a maneira encontrada de deixar uma herança aos filhos mas obrigá-los a fazer uma garimpagem pós-morte, reunindo a tonelada de pedra que ficou misturada com a alvenaria. Desde que chegou de Jacobina, em 1967, manteve uma aproximação cautelosa com o recém-iniciado garimpo, um usuário de loteria de poucos bilhetes e nunca um apostador de muitas fichas na roleta.
Acompanhou a fortuna seguida de desilusão de muitos – “o dinheiro daqui foi para a extravagância no Rio de Janeiro” – e não quis se contaminar pela febre da grana. Eram pessoas sem formação se deslumbrando com a facilidade de cédulas e as oportunidades que surgiam para quem acenasse o maior maço delas.
Seu Valdir sempre manteve o auto-controle porque preferia atuar como intermediário, sempre com o bagulho, sempre com a quantidade e não com a qualidade. O decano se destacou como representante de causas do setor e interveio para a construção de estruturas simples de comércio na praça, um quiosque com algumas mesas para a averiguação de clientes e a exposição de vendedores. “Era uma vergonha não ter um lugar para negociar com os gringos”.
Atualmente, a nova proposição é o pagamento da luz elétrica pelas tarifas de eletricidade rural e não com a taxa normal de residência. A iluminação e o funcionamento de máquinas elétricas aniquilam a maior parte dos lucros no garimpo. A maioria dos serviços consome até R$ 5 mil em energia elétrica. Mais de 600 serviços estão parados, nas estimativas mais pessimistas, por causa da falta de recursos para pagar a luz. Há ainda os gastos com lâmpadas elétricas, que podem queimar às dezenas num túnel em um dia, e os explosivos, que custam cerca de R$ 1 mil por mês em grunas de pequeno porte. É nessa hora que o investidor estrangeiro banca o trabalho, contrata 30 empregados e retira o melhor da mina.
Bagulho
Assim como a história imortaliza um Bonaparte ou um Genghis Khan, mas são os soldados que dão as vitórias a um exército, assim como o mundo venera Pelé e Maradona, mas o futebol de verdade é feito por baiacos, dungas e outros teimosos, não são os brilhantes lapidados, as gemas de grande quilate, que dão vida ao circo mítico de cavar, cavar e cavar. Elas continuam como um ideal, o fino do futebol praticado por um Zico, a forma perfeita explicada por Platão, enquanto o alicerce do garimpo são as rochas foscas de coloração variável. Ou, em outras palavras, simplesmente o bagulho.
Ao contrário da pedra preciosa, que tem a individualidade de uma debutante e é laureada como uma princesa, o bagulho é vendido a granel, sempre em sacos enormes, muitas vezes misturado a lama, em uma coletividade de pedregulho. “Quem mantém o serviço é a pedra fraca, que sai vendida em toneladas e toneladas”, decreta o velho Valdir. “Cavam um serviço com mais de 1000 palmos e não acham pedra boa, mas até chegar a ela é o bagulho que sustenta o negócio”.
Nas mesas dispostas na praça principal de Campo Formoso, o bagulho é o prato indispensável para saciar o apetite de compras. Na hora de separar as pedras – o bagulho sempre fica reunido em sacos, montes, uma mistura de tipos -, um dos vendedores compara a organizar uma fila de mulheres. A feia vai para um lado, a bonita vai para outro.
Os indianos são os principais compradores das pedras a granel. Na prática, uma dezena deles responde pela sobrevida do garimpo, servindo como intermediários para a exportação do material para a Índia e outros países do sudeste asiático. Não existe uma contabilidade capaz de precisar quanto de dinheiro movimentam os estrangeiros de pele morena e cabelos escuros, muitos com o sotaque característico. Há uma dificuldade em obter informações sobre compra e venda, principalmente porque o recolhimento do imposto referente a transações com minérios é nebuloso.
Mas há algo tão garantido quanto a rodada de bebida para todos logo que uma grande pedra é encontrada. É a certeza de que qualquer negócio com um indiano vai ser honrado nos valores exatos e nas condições previamente estipuladas. No garimpo, palavra de indiano vale até um pouco mais do que firma reconhecida em cartório. Em mais de 40 anos, os garimpeiros se acostumaram a fornecer o número da conta no banco para pagamento de R$300 ou R$300 mil. No outro dia, o valor já estaria depositado.
A morte do rei Gupta
A tradição começou com a chegada de Ramlal Rawat Bhagvanlal, em meados de 1973, em pouco tempo resumido a Gupta, nome de pronúncia mais razoável para os humildes garimpeiros. Empresário no Rio de Janeiro, mudou com a esposa, Sarose, e os três filhos para uma casa de dois pavimentos e aparência suntuosa aos padrões de arquitetura de Campo Formoso. Hoje, o imóvel é a sede da secretaria municipal de saúde, enquanto na época da chegada da família um sarau com coquetel serviu para chamar a sociedade campoformosense para o convívio dos forasteiros.
Daquele dia em diante, a casa virou a meca dos negociantes de pedras preciosas ou qualquer tipo de material que representasse para Gupta a chance de lucro futuro na revenda. E isso durou até a manhã de 10 de abril de 1975, quando o assassinato dele manchou de sangue as relações entre garimpeiros e indianos. No garimpo, todos sabiam da sociedade entre o gringo e os mineiros José Matias e Osvaldete Alves dos Santos, conhecido como Bidinho. Foi este quem chegou ao escritório de Gupta, no Hotel Central, e depois de uma rápida conversa que virou discussão deu o tiro que matou o sócio aos 36 anos de idade.
Na última edição de abril de 1975, a revista Manchete fez a reconstituição do crime que chocou Campo Formoso: “Gupta abriu as janelas do quarto do hotel onde conversava com Verma. Do lado de fora, Osvaldete pediu a sua atenção por um instante. Gupta foi à janela, discutiu, argumentou, negou e quando estava dando as costas recebeu diversos tiros, um atravessou o coração”.
O assassino guardou a arma que tinha disparado os dois projéteis, ainda teve tempo de catar papéis no chão e só depois entrou no carro rumando para a cidade de Senhor do Bonfim. Permaneceu um tempo foragido e nunca foi preso, mesmo com a autoria do crime confirmada. Em março de 1994, um júri popular o absolveu por seis votos a um, prevalecendo a tese de legítima defesa. Bidinho continua transitando pelas ruas de Campo Formoso, onde é descrito como uma pessoa pacata e até de bons sentimentos, a depender da fonte. Sua história faz parte de qualquer conversa, mas ele mesmo dificilmente participa das rodas de papo. É arredio e faz questão do silêncio, poucos ouviram sua versão sobre o episódio.
O inquérito policial concluiu que o homicídio foi provocado por questões de negócio. Gupta tinha acertado a compra das partes dos sócios nos serviços por CR$ 23.300, mas Bidinho nunca ficou conformado com o valor, achando que deveria receber mais. Naquele dia, bebeu duas doses de uísque e foi para o acerto de contas. Pediu o pagamento de CR$ 26.000, mas ouviu do indiano que o valor acordado era CR$ 23.300. Esperou dar as costas e atingiu com o tiro que derrubou definitivamente o homem que ficaria consagrado como O Rei das Esmeraldas. “Nunca mais você vai fazer isso com alguém”, determinou Bidinho. A história do garimpo ficaria para sempre associada com a tragédia.
CAMPO MINADO
Doenças e intrigas comerciais são perigos que vão além do desafio de entrar numa gruna
O sufocamento do neófito é proporcional aos passos em direção ao centro da rocha. A distância da luz natural do início do túnel aciona um alerta orgânico nos calouros do subterrâneo. O nome é gruna, mas também pode ser chamado de teste de limites. Dentro da gruna, o ar rarefeito, a sensação de prisão, as gambiarras débeis, sombras projetadas em um túnel onde não dá para ficar em pé. Dentro da gruna, o isolamento e as frases ouvidas em ecos, a troca de sussurros sob a serra. Há apenas rocha e a promessa de riqueza.
Alguns serviços invadem até 300 metros de rocha, seja subterrâneo ou um túnel horizontal e em ambos a sensação de ser engolido por uma boca estreita com toneladas de solidez não é simples de digerir. Para os homens acostumados aos rigores de pedra tudo aquilo é natural como ocupar o assento de operador de telemarketing. Com a diferença que aqueles trabalham com explosivos de verdade e estes ficam com as bombas dos clientes.
Uma vez dentro da gruna (o túnel compacto da extração), os conceitos de tato, visão e audição se modificam para sensações uniformes. O tempo não passa porque não se percebem mudanças climáticas. Não fica mais claro, nem mais escuro. Não chove e nem faz sol. Não há alteração para mais calor, ou mais frio. Não venta, não gela, nada. Apenas o tempo pára e se rende ao ciclo imutável das pedras.
Mal do garimpo
Dentro da gruna é onde se está mais próximo da riqueza em estado bruto, mas é também onde se fica de mãos dadas com o perigo. José Anastácio de Souza atuava no corte da rocha antes de ser acometido da segunda principal enfermidade que paralisa os trabalhadores do garimpo. Se a nostalgia da riqueza é a doença de alma predominante, os problemas de pulmão corroem as carnes e comprometem a salubridade do serviço. Anastácio largou tudo antes do que seria o diagnóstico irreversível. Manifestava os sintomas típicos da moléstia contraída pela inalação constante do pó da pedra: falta de ar, cansaço. “Não foi um e meio nem dois que morreram por aqui”.
O terror é o pó que se desprende das rochas conhecido como sílica, agente principal da doença silicose, que provoca um ressecamento pulmonar até levar à morte. Os riscos do ambiente de trabalho, a umidade excessiva, o consumo exagerado de bebida alcoólica, são como uma placa de aviso na entrada do garimpo: aqui, vive-se pouco.
Aos 39 anos, Anastácio parece ter a idade de alguém que seria seu pai. Depois de uma peregrinação de 12 meses por hospitais públicos e privados de Salvador, ele está ajoelhado sobre o peso do diagnóstico. Se você quiser mais um dia de vida, se afaste da poluição, foi o que disse a médica na previsão mais imediatista. “Eu não subia uma ladeira como essa”, relembra Anastácio, apontando os quase 200 metros de inclinação para quem sai das minas em direção ao centro da Carnaíba.
Agachado à beira do riacho, vasculhando detritos, ele é mais um rebaixado na hierarquia do garimpo. Conseguiu sair da gruna antes que o óbito o alcançasse. Passou a orbitar nas redondezas. Anastácio rejeita mais um convite para retornar ao interior da mina. “Quijila é mixaria que Deus ajuda e dá sorte”.
Os quijilas estão no último patamar, formam a base de uma pirâmide que é coroada por grandes empresários e sustentada pelos proletários. Homens, mulheres e crianças armados de martelinhos e peneiras, lutando para encontrar um pouco de sobrevivência no material que não serve aos senhores do garimpo.
Na vida de arrecadar entre 30 e 50 reais por semana, Anastácio reparte os lucros e o convívio com a mulher, Elisa Pereira de Souza, 53 anos de idade, aparência física compatível com o companheiro. Ela também é uma batalhadora de torso na cabeça segurado por boné, uma proteção do sol que começa a castigar às 5h, quando acorda e vai direto para o serviço. O casal é unido há 16 anos, desde que Anastácio ainda podia estufar o peito com o orgulho e o prestígio financeiro de garimpeiro. Quando adoeceu, foi o dinheirinho da quijila que serviu para pagar as contas. É o bagulho que sustenta tudo, afinal.
A água lava o arrulho que sai de dentro da gruna e é uma bacia lamacenta, feita com pneu de caminhão, a pia onde os quijilas se debruçam em busca da bênção de uns trocados. Daline da Silva Ribeiro e Adelício Alves Rocha constituíram uma sociedade lavrada na informalidade dos tonéis espalhados, marcos da periferia do garimpo. São os quijilas, centenas e centenas deles, limpando o cascalho, debulhando, coletando o grosso do garimpo. As toneladas que viram carga de exportação se transformam em preciosidade pela quantidade.
A rigor, qualquer morador pode ter um serviço próprio, dentro do terreno de seu imóvel, ou arrendando uma faixa de terra (pela qual só terá direito a 25% do extraído, livre de despesas, porque o resto é do dono do terreno). A Serra da Carnaíba é considerada área de livre garimpagem, por isso não é necessário licença ambiental para a exploração, basta ter disposição para trabalhar.
Intrigas comerciais no garimpo
Edmundo Dantas acaba de assumir a concessão de uma mina e está naquele processo de planos e inércia de quem acaba de ter um filho. Nos últimos dias, tem ido para a serra, onde fica sentado por horas, olhando a entrada da gruna que ainda está com acesso obstruído. Tem olhos brilhantes sob os óculos, claros como as riquezas que imagina ao alcance dos futuros operários de suas organizações para extração de minérios e desenvolvimento de fortunas.
Edmundo acaricia um saco ordinário, cheio de pedras compradas a granel, como se fosse movido por alguma superstição ou um tique nervoso de quem não consegue esperar a concretização do sonho de nababo. “Pra tocar o serviço, preciso de recurso financeiro, porque de repente você vai lá e não tem o retorno imediato”, antecipa-se, explicando as razões de seu lucro ainda não ter passado de potencial para matéria-prima de uma polpuda conta bancária. Por isso, ele vai arrendar para um grupo paulista, o que considera muito mais honroso do que “se vender a um investidor estrangeiro”. “Nossas riquezas estão saindo de graça para o pessoal de fora”, condena.
Hábil em fazer análises do contexto econômico, ele não consegue explicar muito bem como passou de simples admirador da esmeralda para empresário do ramo. O seu ensaio de justificativa é dizer que recebeu o serviço como pagamento de dívidas. Mascate de artigos para bebês, passou 12 anos vendendo de porta em porta aos garimpeiros e nas cidades de Jacobina e Campo Formoso até bater agora na entrada da vida nova. Edmundo gosta de esmeralda e tem olhos verdes de negociante ambicioso.
Só que os quijilas não possuem os instrumentos necessários para a exploração, ou lhes falta força, saúde ou coragem. Por isso, orbitam no limbo entre o bagulho (o material imprestável) e a escolha (as pedras com algum valor). Ali, na circunvizinhança de uma mina, o arrulho chega em sacos de aniagem ou carrinhos e vai sendo jogado para uma catação ávida de formiguinhas dos minérios. De domingo a domingo, o trabalho é lidar com a escória e retirar o mínimo de dinheiro de onde só se observa refugo. Daline e Adelício conseguiram um punhado de bolinhas sólidas cor de mate que acham viável pedir R$40 como pagamento. A peneiragem continua, num processo de escoar a água lamacenta e levar os resíduos para a contra-luz da tarde, em busca de um brilho em sociedade. “Vale, sim, 40 reais, o senhor não vai querer?”
Visão de forasteiro
O convite da riqueza e da aventura é uma sedução sem limites, pode contagiar o comprador ou forasteiros improváveis. Na virada do milênio, Fábio Lamachia Carvalho ainda estava totalmente inserido na civilização burguesa. Filho de executivo, morador de condomínio de luxo, dividia o tempo entre um estágio em empresa de informática, o curso de marketing numa faculdade particular e a academia de ginástica. Aos 25 anos, o paulistano passava o réveillon em Itacaré, no sul da Bahia, quando os dois amigos que o acompanhavam receberam um telefonema dos pais. Acharam esmeraldas nas minas de propriedade deles na Carnaíba. Precisavam de gente de confiança para fiscalizar o garimpo e Fábio foi convocado.
Para tomar a decisão, precisou apenas do tempo necessário para fazer duas ligações. Na primeira, comunicou a ideia para a mãe e pediu para trancar a matrícula no último semestre da graduação. A outra foi para se demitir do emprego num edifício bacana da capital paulista. Estava pronto para viver cinco meses de bandeirante.
De janeiro a maio de 2000, Fábio virou fiscal de um japão, morou num contêiner infestado por moscas, aposentou relógio, computador e celular, em troca de 2% no faturamento e a preciosidade de conhecer uma nova vida. Ganhou R$7 mil na temporada, o dinheiro foi todo gasto em diversão (como qualquer bom garimpeiro), mas terminou reunindo o aprendizado para escrever o livro Sonho Verde, onde conta essa transformação de cultura que precisou se submeter.
Passava até 12 horas ininterruptas em minas a quase 100 metros de profundidade, usando capacete, camiseta, bermudões, meiões de futebol até os joelhos e galochas. Deu sorte nas duas primeiras semanas, retirando quase 50kg de pedras de valores diversos, mas o local “secou”, que no jargão da Carnaíba significa ficar escasso de descobertas. Precisaram migrar para outra mina a 180 metros abaixo do solo, outro teste de resistência. “Quase morri três vezes: quando uma tora imensa despencou 40 m e caiu do meu lado; quando o guincheiro se precipitou e me içou pendurado por uma só perna e de ponta-cabeça; e quando tomei um choque por causa de um fio desencapado”, recorda.
Quando voltou para São Paulo, passou três anos lapidando as anotações de um diário, até chegar no texto final para o livro. Tinha feito amizades e comido quase diariamente carne de bode (“que tem um cheiro de sovaco, mas um sabor delicioso”). Voltou a trabalhar numa empresa de internet, terminou a faculdade e arrumou nova namorada, mas estava tão impressionado com a sensação inebriante de encontrar uma preciosidade no meio da rocha bruta que pretende mudar para outros seis garimpos e escrever mais livros sobre a aventura.
Uma grande reportagem foi o produto de quase um ano de pesquisas das então estudantes de jornalismo Émylle de Azevedo e Sheila Rios. Elas escolheram como trabalho de conclusão de curso em comunicação nas Faculdades Jorge Amado escrever um livro sobre a saga do garimpo na Carnaíba. Em dez viagens ao local, terminaram investigando as relações complexas entre operários das minas, atravessadores e concessionários, além de um levantamento histórico desde a descoberta das primeiras jazidas de esmeraldas.
De uma forma subjetiva, ingressaram no universo de riqueza instantânea e decadência gradual dos trabalhadores. De uma forma prática, invadiram uma mina, relatando a emoção sufocante de uma estreia subterrânea. “É impressionante dentro de um garimpo. A sensação é de como se estivéssemos em um buraco sem saída, em um labirinto em que ao redor só vemos rochas”, descrevem no livro Caçadores de Esmeraldas. Também recuperaram manias de antigos garimpeiros folclóricos, como Sebastião Pé de Boi, que costumava ir trabalhar todos os dias vestindo terno branco de brim e invariavelmente terminava inutilizado, mas ele colocava uma roupa nova no dia seguinte, ou Joaquim Macaco, que colocou três esmeraldas na dentadura e não parava de sorrir para mostrar sua boca preciosa.
FEBRE VERDE
A busca por esmeraldas tem mais de 300 anos no Brasil e impulsiona desbravadores numa procura que beira a insanidade
Fernão Dias tinha 66 anos em 21 de julho de 1674, quando iniciou sua expedição saindo de São Paulo rumo às esmeraldas nos rincões do Brasil. A saga de bandeirante levava 600 homens e o financiamento da Coroa Portuguesa. Fernão queria riqueza e o título de Governador das Esmeraldas, mas depois de anos invadindo o centro-oeste desconhecido da colônia ele só conseguira colecionar mortes de seus ajudantes, por doença, fome ou fatalidades.
Na obsessão pela descoberta, Fernão Dias perdeu a nobreza ordenando à mulher, Maria Betim, que vendesse todos os bens para a compra de roupas, pólvora e alimentos, necessários ao prosseguimento da missão. Assassinou o próprio filho, José Dias Paes, acusado de liderar uma conspiração de amotinados. E só depois disso chegou até o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, acompanhado de Garcia Rodrigues Paes, outro filho, e do genro, o notório Borba Gato.
Ali, mesmo avisado pelos indígenas que era proibido de profanar as terras sagradas, Fernão encontra as pedras verdes de sua ambição, mas morre de uma fraqueza repentina, aos 73 anos de idade. Recebe o título de Caçador de Esmeraldas, mas só depois descobre-se que seu tesouro era feito por turmalinas, que não têm tanto valor. O pioneiro do garimpo no Brasil também pode ser considerado o primeiro iludido pela febre verde.
Passados 330 anos dessa epopéia bufa, Rosalvo da Silva, três décadas de garimpo, já viu tanta gente entrando no delírio da riqueza mineral que prefere relaxar. Ele é fiscal de serviço, supervisionando o movimento dos trabalhadores, mas se não há tanta coisa para verificar, simplesmente recosta-se num amontoado de pedras – naquele momento um divã -, onde deixa o sol da tarde e o vento frio da serra transformarem o descanso em sesta.
Rosalvo não é daqueles que gostam de dar ao próprio ofício um glamour inexistente, tentando passar um heroísmo tosco de quem se considera herdeiro de grandes odisséias. Apenas sente que ser garimpeiro naquela região é condição atávica. Os filhos (são cinco, no total) já andam por ali, subindo em montoeira, rondando o futuro. E o fiscal dá a voz que tanto pode ser aviso para quem tenta enfrentar a claustrofobia de uma reportagem, como para quem vai encarar aquilo tudo como trabalho. “Se não tiver coragem, nem descer você desce”.
Arte de quijilar
Quem não pode descer, fica na superfície, exercendo o direito de quijilar, uma emblemática atividade que resume todo o embate de classes capitalista. A arte dos quijilas é uma disposição familiar como provam Reinan e Adilmária, filho e mãe concentrados numa silenciosa, numa respeitosa, sub garimpagem. Mesmo à distância, ele já demonstra ser daqueles meninos precoces de 14 anos, que incorporam o espírito de guardião da casa porque a mãe é viúva ou o pai é ausente. Por isso, abdica de um joguinho de futebol na tarde de sábado com os colegas para acompanhar a matriarca. É só no fim de semana, ela alerta apressadamente, nos outros dias ele vai para a escola.
Reinan enfia o boné na cabeça com a determinação de quem se coroa o príncipe dos quijilas. E permanece caladão lavando o arrulho em busca de semi-preciosidades, como se sua disciplina introspectiva fosse a qualquer momento ser recompensada por meio quilo de rochas que possa ser vendido por R$30. Reinan é apenas um bom garoto triste e sozinho naquela vastidão de serra.
O sonho de Modesta
Esta história na Carnaíba começa de um sonho, mas não do sonho no sentido metafórico que apresenta um ideal de grandes mártires ou a utopia dos destemidos. É o sonho inusitado de dona Modesta que leva aos pecados capitais do garimpo. A mulher do agricultor Manuel Cerino, o Manelinho, era perseguida por garrafas verdes rolando de uma cachoeira enquanto dormia e era tão nítida a imagem no sono que conseguiu convencer o marido a ir em busca de uma miragem.
As fazendas da Salininha e da Marota tinham cachoeiras e por isso se tornaram o alvo dessa busca. O desfecho da história entrou para o folclore da Carnaíba. Os amigos de Manelinho cuidaram para transmitir às gerações seguintes a imagem do pioneiro descendo pela queda d´água, agarrando-se ao capim, que ia soltando e revelando as jóias pelo percurso. Encheu uma lata inteira de querosene com pedras do melhor quilate e vendeu ao empresário Juca Marques, que se tornaria um dos mais lembrados prefeitos da cidade. Manelinho poderia ter se tornado o primeiro milionário da região, mas morreu na miséria, iniciando, além da largada pelo garimpo, a tradição de formar homens arruinados.
Aquele ano de 1963 terminou virando um marco no setor geológico no país. Como as pedras eram de alta qualidade, o Brasil virou um dos maiores produtores mundiais de gemas. Estima-se que 1/3 de todas as gemas comercializadas no mundo, excetuados o diamante, o rubi e a safira, tenham saído de solo brasileiro. Só que a receita é escassa para o país porque o material é exportado em estado bruto e com menor valor.
Qualquer estimativa sobre a circulação de dinheiro proporcionada pelas esmeraldas na Carnaíba parece ser subestimada. Isso porque ninguém faz questão de declarar as vendas para não cair na malha da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), o nome pomposo para o imposto sobre o garimpo. No caso das esmeraldas, as negociações deveriam ser taxadas em 0,2%, recolhido pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Pela lei 8876, de 1994, 65% desse montante deveria ser repassado ao município da extração, 23% para o estado e 12% para a União.
Corpo granítico
O estudo Embasamento arqueano-proterozóico inferior do cráton do São Francisco, de Maria da Glória da Silva e Aroldo Misi, publicado em 1998, na série Roteiros Geológicos da Secretaria de Geologia e Mineração da Bahia, localiza a Serra da Carnaíba em um corpo granítico de 6 quilômetros de diâmetro, na Serra da Jacobina. Na década de 80, essa área chegou a fornecer quase toda a esmeralda produzida no Brasil e cerca de 25% do total da exportação brasileira de gemas, com exceção dos diamantes. Um levantamento feito pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, em conjunto com O Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos, para o programa Aprendendo a Exportar estima que as reservas de esmeralda e berilo da Carnaíba concentram 220 toneladas em Carnaíba de Cima, 105 toneladas em Bráulia-Marota, e 35 toneladas em Bode-Lagarto-Gavião.
“Embora a melhora dos procedimentos mineiros implique em custos mais altos, tem sido demonstrado que pode ser economicamente viável explorar as faixas mais profundas utilizando novas técnicas. Algumas áreas potenciais, situadas fora dos limites legais do garimpo de Carnaíba, têm sido indicadas para prospecção.”
A poesia perdida
No frio árido de Campo Formoso, uma despedida que também é melancolia em estado bruto. E nas serras que guardam as histórias de riqueza e pujança, falência e agonia, estrofes de um sentimento universal terminaram largadas por algum garimpeiro lírico. Uma poesia, no papel borrado pela chuva, ficou como legado perene daqueles dias de descoberta:
Descubro que seus olhos o topázio imita
Vejo esmeraldas no brilho do teu sorriso
Estou encantado, mas algo ainda grita
“Cuidado, seu valor pode ser também meu prejuízo”
Há um jeito certo de te garimpar, eu sempre soube
Seus quilates me seduziram e nunca foram miragem
Se você é de pedra, a parte preciosa me coube
Nessa jornada ao seu encontro, inesquecível viagem
Por tudo, eu seria apenas quijila do seu coração
E até se de ti eu só tivesse a rocha e o arrolho
Ajoelharia para catar as migalhas no chão
Encontraria a gema pra lapidar, assim escolho
Entro numa mina, tesouro escondido nessa gruna
Seus mistérios, sua riqueza, um brilho a ser alcançado
Tive felicidade nas mãos, não consegui manter fortuna
Sou apenas mais um garimpeiro arruinado
A poesia que era explosão de um enamorado, desabafo de um operário destinado à miséria, ganhou o status de pedra preciosa na saga de amor, dor e desespero de quem parte em busca das esmeraldas. Não se sabe mais se o autor fala do valor de um sentimento ou do brilho de uma pedra. Os garimpeiros sobrevivem em seu próprio universo sem rimas, acostumados a um silêncio funéreo e lastimoso dos que invadem a rocha compacta em busca da riqueza ou da própria tumba.
A mina pode ser mausoléu ou cofre, pode ser lápide ou apólice. Quando retornam para suas casas, a bordo de Veraneios cansadas, estão exaustos, vestidos com agasalhos surrados, cabeças cobertas por bonés ordinários, porque o frio de um crepúsculo na serra é inclemente e duro como o maciço de estanho que alisaram com as mãos.
E você lá no fundo do transporte, com a mente ocupada de tantas sensações, nem percebe que a volta é de uma melancolia arrasadora para os heróis derrotados e que o cansaço nada mais é do que a conformação com a derrota de mais um dia sem a pedra salvadora. E você, lá no fundo de seus pensamentos, com a cabeça perdida em meditações perturbadas por solavancos que já não são tão engraçados assim, nem percebe que todos ali estão derrotados e cegos pelo brilho de uma jóia que sempre é a riqueza e a desgraça de um garimpeiro.