A cada semana, uma massa de brasileiros nas redes sociais (sobretudo no antigo twitter) migra de formação, pratica mutação intelectual. Em um momento, são analistas de geopolítica com ênfase no potencial bélico das superpotências, ou na capacidade de alianças deste ou daquele líder. Em outro, se tornam os maiores especialistas na relação de fenômenos atmosféricos com a formação de pilotos para explicar acidentes aéreos. Mais adiante, tornam-se exímios constitucionalistas, capazes de dar pito em ministro do STF (“eles entendem nada da Constituição”).
Agora, sem sermos avisados, temos essa inundação de neurocirurgiões teóricos, como se tivessem brotado numa improvável safra de medicina empírica. Por ocasião do evento com o presidente Lula, os acadêmicos da internet estão nos ajudando a perceber que, ora o presidente está fingindo em uma grande conspiração que envolve médicos e serviço secreto (e isso dá pra perceber pelo formato do curativo), ora está nas últimas e a próxima imagem dele que aparecer vai ser de um clone, um dublê, ou inteligência artificial. Tudo isso baseado nas mais eficazes análises de vírgulas em comunicados, ou em alguma mensagem cifrada do vice-presidente Geraldo Alckmin, que é a combinação das sete primeiras letras de parágrafos de um discurso de improviso. Ah, tem “pós graduado” em questões de membrana cerebral que baseia seu diagnóstico nas palavras de uma vidente em Março, não esqueçamos disso.
É triste que o cérebro de Lula tenha caído em domínio público por uma questão de saúde – e com opiniões tão mal acompanhadas por alguns sentimentos ruins. Melhor seria que uma hermenêutica (a ciência da interpretação de textos) houvesse se debruçado sobre esse órgão que funciona ininterruptamente há 79 anos. Em outras palavras, o cérebro de Lula deveria estar sendo falado em público não pelo prisma da anatomia, mas pela filosofia mesmo.
Vamos falar dele metaforicamente, portanto.
Por que essa joia da biologia já mereceria nossa atenção há tempos? Porque por ela passaram ideias que modificaram o rumo do país nas quatro últimas décadas, pelo menos. Algumas consideradas bem positivas: a Carta aos Brasileiros e a Caravana pela Cidadania: programas sociais; o FIES, o reforço do Mercosul; a Copa do Mundo no Brasil e as Olimpíadas no Rio (mas não os estádios superfaturados), remodelar o Bolsa Escola para o Bolsa Família.
Na Bahia, passou pelo cérebro de Lula a ideia de lançar Jaques Wagner governador do estado. Como todos sabem, não foi do presidente a sugestão por Rui Costa. Era notória a preferência por José Sérgio Gabrielli, então presidente da Petrobrás. Coloque nessa conta: Dilma Rousseff para o Brasil, Fernando Haddad e Guilherme Boulos para São Paulo.
Foi também deste órgão com massa aproximada de 1,5kg que brotaram pensamentos de grande peso político e social: chamar o Plano Real de estelionato eleitoral (embora, no governo, tenha sido fiel aos princípios dele); aprofundar relações internacionais com governos populistas e controversos, como o caso de Hugo Chávez, na Venezuela; crescimento recorde de gastos públicos e endividamento.
Ah, não podemos esquecer que, segundo Ciro Gomes, este mesmo encéfalo foi responsável por urdir uma traição política contra ele. E, de acordo com o powerpoint do então procurador Deltan Dallagnol, e as sentenças do juiz Sérgio Moro e de magistrado de outras instâncias, foi deste órgão que partiu a mentoria do Petrolão (enquanto políticos já tinham alertado sobre o Mensalão).
É nesse complexo ponto do sistema nervoso que notórios neurocirurgiões estão mexendo – e nos informando que está tudo bem. Respondidas as questões estritamente médicas, há que se falar sobre as (legítimas) indagações políticas: qual será a condição desse cérebro daqui a alguns dias e, mais ainda, daqui a dois anos, quando for chegada a hora de uma nova eleição?
Numa eventual campanha, Lula terá 81 anos. Atualmente, com 79, já é o presidente mais velho da história do Brasil em exercício. Não é distante especular e comparar com a performance de Joe Biden, que desistiu de uma campanha à reeleição com 82 anos, por visíveis fragilidades de saúde.
Muito provavelmente, antes das especulações ao entorno, antes mesmo de ocorrer a este colunista a dimensão deste dilema, Lula já deve ter se deparado com a encruzilhada: como sair de cena sem se retirar por completo, a quem ceder o espaço sem violentar as convicções e nem perder totalmente o controle. É possível que, usando a linguagem corporativa, ele tenha imaginado deixar o cargo de CEO para virar o Chairman. Ou sair de presidente executivo para presidente do conselho.
A natureza geralmente poupa o ser humano da extenuação e do dilema de ter que escolher o sucessor. Ela cria o atalho dos descendentes diretos. São eles que, às vezes literalmente, nasceram para substituir. Só que em política essa questão da herança genética não cabe como cadeia sucessória (embora, tradicionalmente, muitos filhos e netos tenham feito força para ficar com espólio político).
O DNA eleitoral exige outras nuances e análises. Tem a questão da legitimidade (para que a escolha não seja questionada, gerando conflitos e intrigas), o peso do legado, a dificuldade de abrir mão do poder. É sempre tênue a linha que delimita o desejo de querer que o sucessor seja bem sucedido do instinto (até inconsciente que seja) de evitar que ele consiga superá-lo.
Dito isso: Haddad, ou Rui Costa? Janja, ou Gleisi? Boulos ou Camilo Santana?
Com o perdão do trocadilho, isso é um quebra cabeças. Saudade de quando todos éramos especialistas apenas em escalar a seleção brasileira de futebol.
Siga-me nas redes sociais: @opabloreis