A cena de uma mulher jovem inserindo uma sonda no abdômen de um moribundo semi idoso, lânguido, deitado em algo que pode ser um divã ou uma maca, isso tudo pareceria vulgar e até escatológico em quase todo contexto imaginável. Nas lentes de David Cronenberg, e na interpretação de Kristen Stewart e Viggo Mortensen, para Crimes do Futuro (2022), se torna materialização de desejo e repulsa, uma distopia freudiana do que seria a arte visceral num tempo que está por vir.
Tratar a remoção de órgãos internos como experiência gramaticalmente erótica e íntima – ou como uma performance artística – parece tão excêntrico e grotesco como seria afirmar que sofrer bullying na infância transforma o garoto em um cidadão mais apto a derrotar a fábrica de adversidades a que chamamos de vida adulta.
E se o filme estiver mais para documentário do que para uma delirante ficção científica? Qual será o reduto a que ficará confinada a arte por e para humanos, num ambiente em que as máquinas cada vez mais se apropriam da técnica, numa velocidade crescente? E se elas já se entendem com a subjetividade que guia as mãos de artistas plásticos, ou os pensamentos erráticos de um escritor, ou o improviso acelerado de um comediante?
A Inteligência Artificial (IA) tem sido alvo de preocupações crescentes quanto a sua capacidade de substituir trabalhos humanos, incluindo as criações artísticas e literárias. No entanto, essas preocupações são infundadas e baseadas em um mal-entendido sobre a natureza da criatividade e da produção artística.
A criatividade é uma combinação única de habilidades técnicas e emocionais, e é a capacidade humana de se conectar com o mundo ao nosso redor de forma única e significativa. Não é possível programar uma máquina para produzir arte ou literatura da mesma maneira que um ser humano, pois a criatividade é uma parte intrínseca da nossa humanidade. Além disso, é tão legítimo usar uma ferramenta para ajudar na criação artística, como usar uma ferramenta para ajudar na administração de uma empresa.
A história do escultor Zé, que viveu na Grécia antiga, ilustra bem este ponto. Zé era considerado um dos mais talentosos escultores de sua época, mas também era conhecido por ser muito orgulhoso. Certo dia, ele se desafiou a criar a escultura mais perfeita já vista, mas logo descobriu que, apesar de todo seu talento, não seria capaz de atingir tal perfeição. Então, ele resolveu pedir ajuda à deusa Afrodite, deusa do amor e da beleza.
A deusa concedeu a Zé a perfeição que ele tanto desejava, mas com uma condição: ele nunca mais poderia dizer que havia criado a escultura sozinho. Zé aceitou o acordo e, a partir daquele dia, suas esculturas passaram a ser conhecidas como obras-primas da natureza e da divindade. Embora a deusa tivesse ajudado na criação, a escultura ainda refletia a habilidade técnica e a visão artística de Zé.
Da mesma forma, artistas e escritores podem usar a IA como uma ferramenta para inspiração e colaboração, ajudando-os a aprimorar suas habilidades e ampliar sua criatividade. Assim como o escultor Zé, eles podem usar a tecnologia como um aliado, sem comprometer sua autenticidade ou originalidade.
Em resumo, temer que a IA vá substituir as criações artísticas e literárias é como temer que a roda vá acabar com a caminhada.
A roda vá acabar com a caminhada… As frases acima, já otimizadas para SEO, vêm do ChatGPT, que poderemos humanizar para Gepeto.
Gepeto seria capaz de escrever melhor que Shakespeare, se ele tivesse vivido as experiências de Shakespeare, no tempo de Shakespeare, com as sensações experimentadas por aquele corpo localizado historicamente na Renascença (ou melhor que Gabriel Garcia Marquez, caso fosse um colombiano de tendências marxistas inserido no politicamente conturbado século XX).
Lógico que ChatGPT pode ser melhor Rachel Reis do que a própria autora de Maresia, que faz você não ser a mesma pessoa depois de ouvir 50 segundos. (E ser ainda mais desigual depois de ouvir 50 vezes, num looping de sentimentos).
Isso se recebesse o compilado de 25 anos de decisões e renúncias, de chegadas e partidas de uma garota nascida em Feira de Santana, filha de cantora de seresta. E se os terabytes de catarses e experiências fossem turbinados com tantas desilusões amorosas sofridas – e as mesmas tantas provocadas. Com aquele dia que ouviu pela primeira vez que misturar manga verde com leite produzia a morte, ou quando percebeu que ficava bonita com a barriga de fora – ou quando descobriu o melhor tipo de sorriso para o formato do rosto dela.
Ou quando exerceu a coragem na auto libertação que é largar faculdade de publicidade e um emprego de recepcionista no posto de saúde para se dedicar ao sonho de compor e cantar. Quantas porções de tudo isso aí estão influenciando a receita para gerar Maresia (um código binário que parece saído da caixa de som de memórias das coisas não vividas e te domina pelos cinco sentidos, e você não sabe se pela voz, pela letra, pelos contratempos de uma batida de bolero ou de arrocha, ou pelas imagens sinestésicas de um clipe).
Se formos essa coleção de algoritmos, de onde pode ter saído o prompt capaz de ligar a ignição de um adolescente do interior do Piauí para se tornar, por conta e talento próprios, o mais bem sucedido nome feito na internet do Brasil? Quais os gatilhos em bilhões de bits que levam Whindersson Nunes a ser o que ele nasceu para ser (e quem decide esse limite)? Ele resolve pivotar de vida, girando de uma confortável unanimidade no humor para jogar como cantor e compositor. E tem repertório para homenagear, numa mesma letra, o pugilista Acelino Popó Freitas, o escritor José de Alencar, o jogador de sinuca Baianinho de Mauá e a “dona de uma raba que não paga imposto porque tem uma sentada sobrenatural”.
O que é o Whindersson essencial e o que é recurso adicional para ele ser o melhor humano que poderia ser – ou o transhumano, na perspectiva de Yuval Noah Harari?
Como exemplo, imagine um chef de cozinha que usa uma balança para medir ingredientes com precisão, ou um escritor que usa um software de edição de texto para revisar sua obra. Ambos estão usando ferramentas para melhorar sua criatividade e produção, sem comprometer sua autenticidade ou originalidade. Da mesma forma, os artistas e escritores podem usar a IA como uma ferramenta para inspiração e colaboração, ajudando-os a aperfeiçoar suas habilidades e ampliar sua criatividade.
Em resumo, temer que a IA vá substituir as criações artísticas e literárias é como temer que a roda vá substituir a caminhada. A tecnologia pode ser uma ferramenta poderosa para ajudar os artistas e escritores a aprimorar sua criatividade e produção, mas nunca poderá substituir a essência humana da criatividade e da arte. Assim como um CEO contratado não faz todo o trabalho de uma empresa, mas sabe como contratar as pessoas certas e fazer cobranças adequadas, a IA pode ser usada para apoiar a criatividade humana, mas nunca será capaz de substituí-la.
Talvez, mudança severa, mais do que a roda, tenha sido o domínio do fogo. Só que não estávamos lá para traduzir o nível de terror e ansiedade diante daquelas chamas não mais espontâneas, ou vivenciar a perplexidade sobre o que poderia ser feito dali a diante.
Mais ainda, não estávamos presentes no mais assustador rito de passagem dos humanos, que foi a criação da linguagem e todas as implicações inauguradas a partir dela, desde a transformação de instinto em emoções, até a erupção de hierarquias – ou da depressão, e do xadrez – passando por todas as manifestações artísticas (Deus, strogonoff, futebol e guerras só existem porque podem ser expressados e traduzidos).
Problema mesmo começamos a ter foi com a linguagem. Antes dela, não havia sobre o que (nem como) reclamar. Mas aí é assunto para outro papo com a IA.