No momento em que termino de escrever, a conta no instagram @jeniffercastro já passava de 2,3 milhões de seguidores. Uns cinco dias atrás, ela era uma bancária desconhecida do grande público, vivendo uma rotina anônima. Em um piscar de olhos, passou de funcionária do Bradesco a superinfluenciadora, alçada ao Fantástico como tema central de um debate nacional. O que parecia ser uma tentativa de linchamento público se transformou em algo maior: um espelho que reflete nosso desejo reprimido de dizer “não” em um mundo obcecado por “sim”. É também resultado do que se chama em psicanálise do conceito de transferência. Em outras palavras, tem muita gente no Brasil se projetando na Jen.
Li articulistas, vi influenciadores colocando isso como uma espécie de doença social: aquela cujo sintoma é darmos pompa e circunstância a personagens sem qualquer dom ou aptidão, pessoas que se tornam celebridades apenas por serem celebridades. Nada mais equivocado: Jennifer demonstrou talento e singularidade. Inclusive, um muito raro: a competência de dizer não, a maestria de manter a negativa, e continuar inabalável com isso. Sem remorso, sem culpa.
Ela tem cara de que está sempre num “foda-se”, só que ainda mais rara do que o contingente que verbaliza o “foda-se”. Ela não esbraveja, não brada, não faz discurso, não milita. Não foi o “não” esbravejado ou performático. Foi o “não” tranquilo, carregado de uma indiferença tão autêntica que parece incomodar mais do que qualquer discurso inflamado. Não há militância ou tentativa de agradar na sua atitude. Ela simplesmente não se importa.
Alguns vêem essa explosão de seguidores como presságio de nossa mazela nacional. A jornalista Mariliz Pereira Jorge gravou um vídeo analisando a situação com um título que já diz muito: “A moça do avião e a histeria da internet”. Uma das teses dela é que a transformação de pessoas anônimas em celebridades é um fenômeno que já existia mas foi amplificado pelas redes sociais. “Isso não significa que a vida dessa pessoa em questão passe a ter qualquer interesse depois da curiosidade saciada”.
O Valor do “Não” em um Mundo de “Sim”
Para muitos casos, esse conceito de celebridade instantânea que surge num vácuo de assuntos e evapora na mesma velocidade pode valer para muitos. Não para Jeniffer, que tem um dom. Ela merece: é mártir de uma causa que ninguém estava com orgulho de empunhar. Ela é a musa que ousou dizer não num mundo em que a positividade e a aceitação a tudo são, por mais paradoxal que seja, uma imposição social.
Os americanos têm um termo para isso: “people pleaser”. São pessoas que sempre tentam agradar, evitam a qualquer custo frustrar expectativas. Pessoas que sufocam suas próprias vontades em nome do conforto alheio. A cantora Luiza Possi fez uma reflexão em vídeo. “Eu não estou sendo cruel. Eu quero fazer as coisas para mim, do melhor jeito para mim. Parece tão simples, são três letrinhas e um acento e não conseguimos fazer”
Por tudo isso, acho que você queria ser Jeniffer e ouso enumerar. Você queria ser Jeniffer quando seu marido chega na cama tarde da noite, você já dormindo, depois de excessos com a turma, fingindo que está amoroso demais, insinuando carícias gentis (mas sem conseguir fingir a respiração de cerveja). Você queria ser Jeniffer. Depois do “Não é não” do carnaval – que já foi, correta e adequadamente, institucionalizado e que deve ser logo ampliado para o de colegas de trabalho e de esbarrões em barzinhos -, você quer dar outras negativas sem se sentir mal com isso.
Ou quando seu chefe pede uma urgência em algo sem sentido para o resultado do projeto, mas que vai servir para a manutenção do ego dele. Você tem vontade de ajustar o volume do fone e fingir demência. Ou quando sua amante repete algumas vezes que a amiga dela ganhou aquela bolsa cara do namorado (oficial) dela e que uma atitude assim sabe como reforçar que está apaixonado. Provavelmente, você gostaria de ser Jeniffer quando te repetissem que aquele orçamento do conserto do carro (que ambos já tinham aceitado) não vale vai ter que ser refeito porque a avaliação pelo técnico foi inadequada.
Jennifer é a anti heroína da era do good vibes. Inspirada por sessões de terapia cognitivo comportamental, ou anestesiada pelo repertório de Léo Santana, ela se manteve posturada e calma. A jornalista Madeleine Lacsko qualificou ela como a “diva do equilíbrio emocional”. Porque se manteve impassível ao ouvir que “é repugnante, no século XXI, a pessoa não ter empatia por uma criança”. Muita gente falou em plenitude, bom trabalho de psicólogo. Ela só tinha uma janela e um fone de ouvido.
O Direito ao Assento (e ao “Não”)
A história ainda tinha mais áreas cinzentas que o preto no branco do maniqueismo raso nos fazia querer imaginar. Não foi a mãe quem filmou, mas uma justiceir, ops, passageira que chegou a mencionar antes: “agora, vou deixar ela famosinha”. Ela estava tão certa de que tinha razão de que não apenas filmou, mas publicou e fez viralizar. E o menino, tão interessado naquela poltrona, já estava acomodado perto de uma janela, não estava apenas tendo um rompante de mimado. Ele queria ficar ao lado da avó.
Pela lei, apenas uma solicitação do comissário pode fazer com que o ocupante mude de lugar. Ou por questões de segurança e proximidade com a saída de emergência, ou por questões de balanceamento da aeronave. A localização dos passageiros faz parte da documentação de voo. Desde 2016, assento é considerado acessório, pelo qual você paga para escolher, ou deixa a escolha aleatória, pela companhia.
No final de semana, a manchete era inusitada: “Famosa por negar assento em avião, Jeniffer faz primeira publi e decepciona internet – ´sem carisma´”. Sério que era carisma o que se buscava em alguém que tomou aquela atitude? Jen, me permita chamá-la assim, nem precisa desse carisma. Foi justamente sua falta de esforço em cativar que a tornou tão interessante. O direito supremo a dizer não, num mundo em que o obrigatório é aceitar as demandas do outro – não o que o bom senso, ou a normal, ou até o velho “porque eu quis” não parecem caber. Jeniffer não verbalizou grandes filosofias, mas sua atitude foi um manifesto silencioso: o direito de priorizar a si mesma.
Por fim, um questionamento: será que aquele jovem vai sofrer tanto quando descobrir que, para pegar um bom lugar no show de k-pop, precisa madrugar para comprar ingresso na fila online, e depois passar umas 20 horas acampado antes da abertura dos portões?