Com um a menos, Atlético ganha 1° estadual contra Bahia de Feira; nunca houve decisão assim

Nessa postagem, a crônica dos dois jogos que garantiram ao Atlético de Alagoinhas o primeiro título baiano em sua história de meio século, após derrotar o Bahia de Feira, que não tinha perdido em seu estádio em 2021.

Qualquer garoto de Alagoinhas que se interessou por futebol nos anos 1980 tinha razão em ser Catuense. Aquele escudo, aquela camisa de impactantes laranja e amarelo eram muito mais do que o nome de uma empresa rodoviária com o gentilico da cidade vizinha. Ali era Bobô, Sandro, Zanata, Luis Henrique, que equivaliam a CR7, Messi, Neymar, Mbappe, para um jovem em era pré Internet e pré tv por assinatura, que tropeçasse em sua primeira – e tão rara – bola de couro. Ali era também a proximidade com a Série A, com a falecida Copa União, com tudo o que representava a elite do futebol nacional.

Era inevitável torcer pela Laranja Mecânica que mobilizava até Fernando Vannucci e equipe da Globo a se deslocarem para o ninho do Bem Te Vi para explicar ao Brasil quais segredos estavam na versão baiana daquele carrossel holandês. Por tudo isso, inevitável a Catuca contagiar aquela geração, para olhares enviesados dos pais, estes, sim, avis rara da resistência. A Catuense fora fundada quatro anos depois do Atlético, como equipe amadora, e só se profissionalizando em 1980. Ser Catuense era Nutella, ser Atlético era raiz.

A partir desde domingo (23), uma geração se renova na admiração ao clube que ganhou o primeiro título estadual somente 51 anos após ser criado. Ao vencer o Bahia de Feira numa inédita final entre clubes que não são de capital, o Atlético se igual ao próprio adversário e ao Colo Colo entre os protagonistas da festa do interior. O Fluminense de Feira, agora na segunda divisão estadual, tem dois títulos.

Não foi fácil. Em 180 minutos dos dois jogos, as equipes marcaram 9 gols, a impressionante média de um gol a cada 20 minutos. E só deu pra alagoinhenses gritarem campeão no 52° minuto, do segundo tempo, do segundo jogo.

Virou chavão entre os que ganham para enaltecer o futebol repetir que “é muito mais do que um jogo”. Aproveitar o ufanismo seria considerar a final muito mais do que uma decisão no interior. É uma vernissage de ambulantes, uma procissão de aduladores, um frenesi de charangas, uma goleada de auto estima.

Virgem de títulos

Fosse um Bavi decisivo, certamente, guardaria emoções invulgares. Após as comemorações de praxe, a taça só não teria a plaquinha de mais um, porque o sentimento seria esse: o Vitória teria o 30°, o Bahia ficaria com o 50°. (E você, adolescente, sabe muito bem a diferença na memória que guarda da primeira namorada, ou do 50° contatinho, se é que tem alguma lembrança de quando ultrapassou os dois dígitos em termos de placar de relacionamentos).

Pois para o Atlético o primeiro troféu baiano transformaria o funesto ano de 2021 em patamar de glória. Entregar a virgindade em títulos estaduais de primeira divisão seria como debutar num novo século.

Vacinas X covid

Feira de Santana também precisava desse resgate de comemorações. A cidade não poderia se render ao estigma de, em 2020, ter apresentado o coronavirus ao estado, com a confirmação do primeiro caso, em 6 de março de 2020. Quando a bola rolou, a estatística de covid no município registrava 705 mortes e 38547 casos confirmados ao longo da pandemia.

Sim, era muito mais do que futebol. No mesmo dia do jogo, a prefeitura de Feira lançou um release em que destacava que a cidade recebera, proporcionalmente menos doses de vacina Pfizer do que Alagoinhas. Foram 7350 na Princesa do Sertão (com 620 mil habitantes) e 7 mil em Alagoinhas (com 152 mil moradores). “É incontestável que a Sesab não trata Feira com o devido respeito”, desabafou o prefeito Colbert Martins (MDB).

Na primeira vez que dois clubes do interior decidiram o título, em 116 anos de competição, deu Alagoinhas.

O narrador Rainan Peralva chegou a ficar com voz embargada após gravar um texto de resumo sobre o Campeonato, durante a transmissão da partida, pela TV Educativa da Bahia.

Plot twist

O azar bateu às costas do zagueiro Iran, do Atlético, aos 18 minutos de jogo. O escanteio cobrado, a bola desviou nele, cuja atenção estava no adversário. Nem o goleiro Fábio Lima esperava e o Bahia comemorou 1×0.

O sensacional se fez presente. Aquilo que roteiristas de cinema chamam de plot twist. Apenas seis minutos depois, o mesmo Iran vestiu a capa de herói e desviou a bola – desta vez, usando cabeça. Um a um, de maneira intensa e emocionante. Quase às lágrimas, o jovem zagueiro foi ao encontro do abraço de técnico e colegas.

Perto do 1o tempo terminar, um contra ataque do time de Alagoinhas foi parado com a mão do zagueiro Wesley no chute de Dionísio. Ronan pegou rapidamente a bola para cobrar o pênalti. Converteu com extrema categoria e se isolou como artilheiro do campeonato com cinco gols.

Mais uma vez o VAR teve participação destacada. No segundo tempo, aos 15 minutos, o árbitro Marielson Alves Silva consultou o vídeo, e decidiu que o certo era corrigir um cartão amarelo para vermelho em Gilmar, do Atlético. A câmera da TVE captou o momento em que ele diz “pé acima da bola, com força excessiva, vou retirar o amarelo e expulsar”.

Com um a menos, jogando fora de casa, era de esperar que o Atlético se abatesse, recuasse, até sofresse um empate. Aconteceu o oposto. Aos 25 minutos, um rápido contra ataque encontrou Dionísio veloz e livre na área do Bahia de Feira: 3×1 surpreendente. O narrador Rainan Peralva não se conteve: “o Carcará mostrou mais uma vez que é um pássaro malvado”.

O árbitro concedeu sete minutos de acréscimo. Aos 45 minutos, na única falha do goleiro Fábio, o jogador predestinado com um apelido fez de cabeça: gol de Pelé.

Ah, aquela criança que começou a se apaixonar por futebol pelos passos da Catuense era eu. Era eu e foram muitos. Mas compreendo, antes da adolescência, que amor por futebol se constrói com outros alicerces que não são apenas títulos.

Carcará, pode conferir os pix de felicidade lá na conta do clube.

 

O primeiro jogo, em 16 de maio

Atlético e Bahia de Feira empatam em decisão nunca vista antes; o que torcidas de Bahia e Vitória ganham com isso?

 

Com dois gols após o inusitado cronômetro de 56 minutos do 2o tempo, Atlético e Bahia de Feira empataram em 2×2 na primeira partida da decisão do Baianão 2021. O clube feirense vai levar a busca do bicampeonato baiano para seus domínios. Se levantar a taça, se iguala ao rival local, o Fluminense de Feira, campeão estadual em 1963 e 1969. O Atlético tenta o primeiro título.

Pela primeira vez em 116 anos, o Campeonato Baiano é decidido por dois clubes do interior do estado. Além de consolidar Feira de Santana e Alagoinhas como pólos tradicionais do futebol baiano, o confronto inédito pode significar um novo olhar dos torcedores de Bahia e Vitória para a necessidade de fortalecer o estadual.

Inaugurado em janeiro de 1971, com a participação de Garrincha, o estádio municipal Antônio de Figueiredo Carneiro (nome de um ex-prefeito da cidade), nunca recebera em seus domínios a arbitragem de video. O VAR teve influência no resultado: com um minuto de segundo tempo, o gol marcado por Ronan, do Atlético, foi anulado, após a revisão que apontou impedimento do atacante Robert. Aos 40 minutos, o pênalti que viraria o gol de empate de Ronan só foi marcado após a conferência no vídeo pelo árbitro Emerson Ricardo de Almeida Andrade.

Todos os quatro gols surgiram depois de 30 minutos do segundo tempo. O Bahia de Feira abriu o placar com Jarbas, num chutão de fora da área. Ronan empatou convertendo o pênalti, cobrado com perna direita. Aos 56 minutos, Adriano desempatou de cabeça. No último lance da partida, 57 minutos, Ronan chutou com a perna esquerda, de fora da área, e encontrou o ângulo do goleiro Jean e também a alegria do abraço dos companheiros de time.

Sem torcida, com aglomeração

O Carneirão tem capacidade nominal para 16 mil torcedores. Certamente, estaria lotado de petroleiros aposentados, herdeiros de supermercados, políticos locais, namoradas de jogadores, donas de salões de beleza, estudantes da rede pública, vendedores de consórcio, enfermeiras do Dantas Bião, pedagogas formadas no campus da Uneb, enfim, todo mundo que é Carcará em tempo integral ou só nos momentos de voos mais longos. O Carneirão é um dos espaços mais democráticos de Alagoinhas. Nos (raros) momentos em que abrigou decisões também se tornou um mosaico mais explícito da sociedade alagoinhense.

Sem público, impedido pela pandemia da participação nas arquibancadas descobertas do estádio, sem charanga, sem caixa de picolé e rolete de cana, a audiência ficou para a TV Educativa, a emissora pública que ganhou o direito de transmissão do campeonato estadual. Antes da partida, a televisão registrou dezenas de torcedores com uniforme de organizadas, em aglomeração na área externa do estádio. Pior: muitos destes abdicaram do uso de máscara (pensando mais no volume do grito do que no grau do risco).

O narrador do jogo, o jornalista Valter Lima, entusiasmado com a primeira decisão realizada exclusivamente fora de Salvador, enalteceu as principais torcidas do Atlético, falou sobre as conquistas do Bahia de Feira, valorizou o caráter histórico da final.

Quebra de hegemonia

O avanço das equipes do interior ao encontro da hegemonia dos clubes da capital também pode ser visto como um benefício colateral para torcedores de Bahia e Vitória. Enquanto alguns optam por justificar a ausência na decisão como um suposto descaso com o estadual, os menos rancorosos preferem ver aí uma ampliação de mercado. Conseguem perceber que mais times em evidência podem significar novos talentos, novas cotas de patrocínio (outras camisas aparecem, outros uniformes são vendidos, mais profissionais de comissão técnica revelados), mais competitividade.

Se for o caso de Bahia e Vitória continuarem usando elencos de transição no estadual, os jogadores serão mais exigidos – e melhor preparados. Se for o caso de adotarem as equipes principais, terão adversários mais próximos tecnicamente do que costumam enfrentar em Copa do Nordeste e Campeonato Brasileiro.

É também um momento de inflexão para parte da imprensa esportiva que, buscando, compreensivelmente, a simpatia dos torcedores – e, sobretudo, anunciantes – da capital costuma destacar os jogos pelo binóculo de Bahia ou Vitória. (“Bahia é eliminado pelo homônimo de Feira de Santana”; “Vitória tropeça diante do Atlético no Barradão”). Mesmo assim, não se espera a emancipação completa do interior nessa competição (e a própria utilização dos nomes Bahia e Vitória neste título já demonstra isso).

O primeiro tempo do jogo entre o segundo e o quarto times que mais fizeram pontos na fase de classificação foi nervoso e sem lances de emoção em campo. Dois dos principais jogadores do Atlético (Miller e Radá) precisaram ser substituidos por contusão e dois jogadores do Bahia receberam cartão amarelo por faltas acintosas. Os últimos 58 minutos (o árbitro concedeu 13 minutos de acréscimo) compensaram a quase apatia inicial. As duas equipes demonstraram o equilíbrio na forma de ataques perigosos.

Tradição Carcará

O Atlético foi oficializado em Abril de 1970, formado por jogadores egressos do campeonato amador da cidade, com os times do Ferroviário, Agulha, Gato Preto, Grêmio. As principais conquistas foram o título de campeão estadual da segunda divisão em 2018 e vice campeão da principal em 2020, e 1973. A adoção do Carcará como símbolo do clube entrou para o folclore da cidade. Na inauguração do estádio, em 71, os conselheiros perceberam que seria bom marketing criar um personagem que atraísse a atenção dos torcedores – a exemplo de equipes do basquete e do futebol americano. Pensaram num boneco gigante com cabeça de laranja (o produto agrícola mais notório da cidade), antes de requisitarem a um vendedor de folhas medicinais que levasse o seu enorme carcará para os voos de exibição que executava, orgulhoso, na feira local. O detalhe é que a algazarra da multidão assustou a ave, que não voltou para pousar suas garras no antebraço do dono, como era o previsto. O feirante já estava havia alguns dias cobrando uma indenização pela fuga do animal, quando o alado pródigo retornou para o ponto da feira. A história já estava comentada demais para não se tornar o enredo de um mascote.

O Bahia de Feira é bem mais antigo. Nasceu em 2 de julho de 1937, com o nome de Associação Desportiva Bahia e, 32 anos depois, virou Feira Esporte Clube. Em 1972, passou a Associação Desportiva Bahia de Feira, foi campeão em 2011 e busca o bicampeonato para completar a década da primeira conquista.

O Atlético foi vice campeão em 2020, derrotado pelo Bahia numa acirrada disputa de pênaltis. No final dos anos 80 e início dos 90, as cidades de Alagoinhas e Feira rivalizavam pelo protagonismo na região, até que a chamada Princesinha do Sertão fosse estilingada como segunda maior cidade do estado, com comércio forte, atração de indústrias e o inevitável apelo de ser o principal entrocamento rodoviário do Nordeste.

O presidente do Atlético, Albino Leite, foi visto acompanhado do prefeito da cidade, Joaquim Neto, usando a camisa de médico do clube. Justiça seja feita, antes de ser eleito, Neto prestava o serviço ao time, sem cobrar remuneração por isso. A política sempre esteve sobrevoando o Atlético – e vice-versa.

O jogo de volta está programado para o domingo (23), também às 16h, em Feira de Santana. Mesmo sem torcida, na Arena Cajueiro, o Bahia de Feira goza de vantagem: tem familiaridade com as características do gramado sintético, que torna a bola mais veloz, quase voando.

 

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