A maior biblioteca rural do mundo está na Bahia – isso não é coisa pra esquecer

Pisca a mensagem na tela do celular: “Bom dia, Pablo! Tudo bem? Me chamo Cláudia, sou jornalista. O motivo do meu contato é a pedido do professor Geraldo Prado, fundador da maior biblioteca rural do mundo, na Comunidade do Paiaiá, localizada em Nova Soure. Não sei se tem conhecimento, mas entre os próximos dias 24 e 26 acontecerá a segunda festa literária na biblioteca. Tive conhecimento que ele quer muito falar com você, e me pediu para que fizesse esse intermédio. Espero ter seu retorno. Gratidão!”

Puxa, que interessante: a maior biblioteca rural do mundo! E na Bahia, numa região como a de Nova Soure! Que iniciativa bacana, como eu não sabia disso antes?

Uma troca rápida de mensagem com seu Geraldo, e a descoberta: eu já sabia disso antes. Precisamente, 14 anos antes, tempo suficiente para ser traído pela memória. Foi a primeira reportagem para um grande veículo de comunicação (o Correio da Bahia), ele reforça. Eu esqueci, seu Geraldo, não. 

De 1° agosto de 2005 (data da matéria publicada) até hoje, muitos (bons) jornalistas passaram pela Alexandria do nordeste da Bahia. A saga do educador Geraldo já foi exibida no Fantástico, ganhou documentário, virou programa especial Esquenta, com a madrinha Ivete Sangalo, estampou páginas de publicações no Brasil e no mundo.

Ah, também subiu ao ponto alto do pódio bibliófilo campesino: na minha época, com 40 mil volumes, era a segunda mais vistosa do planeta, atrás de uma iniciativa em Valladollid, Espanha. Hoje, com 120 mil volumes, mais de seis vezes a população da cidade, segundo o IBGE, ostenta medalha de ouro nas olimpíadas da cultura fora de grandes eixos.

Seu Geraldo convida para a extensa programação da II Festa Literária Internacional (frise-se o caráter sem fronteiras) da Biblioteca do Paiaiá, entre 24 e 26 de julho, com palestras, lançamento de livros, exibição de filmes, oficinas, bailes e até cavalgadas. 

Geraldo está com seus 79 anos. Ao que se vê, preserva boa memória: não esquece de quem se impressionou com a obstinação de levar letras e artes para um local onde só enxergavam enxada e sertão. 

E-mail: bibliotecapaiaia1@gmail.com 

Whatsapp: (75) 9.9975-3903 

Clique para assistir Documentário sobre a História da Biblioteca do Paiaiá 

Clique para ler a reportagem da revista Piauí Livros Brotam no Sertão

Biblioteca em Nova Soure vira Meca do semi-árido

Espaço com 40 mil volumes guarda história inusitada de superação

 

Pablo Reis (1° de agosto de 2005)

 

A colheita de feijão está em franca atividade no distrito de São José do Paiaiá, em Nova Soure. A de milho está prevista para outubro ou novembro, mas a comunidade com pouco mais de 700 habitantes já tem outro tipo de cultura cuja safra é motivo de um orgulho impossível de mensurar em grãos.

No pequeno lugarejo, a 240 km de Salvador, pertencente ao município de Nova Soure, com apenas uma rua central pavimentada, uma biblioteca com mais de 40 mil volumes é um espécie de lavoura intelectual do semi-árido baiano.

É um tipo de alimento que exige o plantio em um terreno fértil de descobertas e cuja apanha não se faz em uma temporada por ano, mas fica armazenada para sempre em um celeiro de conhecimento. É o alimento que não pesa no estômago, mas sacia o apetite por descoberta e desenvolvimento pessoal: a informação.

Estabelecida recentemente como entidade jurídica sem fins lucrativos, a Associação Biblioteca Comunitária Maria das Neves Prado promoveu um fim de semana de festas no povoado para inauguração da nova sede, um sobrado de três andares, ainda em fase de acabamento.

Em uma abordagem mesquinha da aritmética, seria possível dizer que o acervo renderia a média de 40 livros por membro da comunidade, cujos principais imóveis, até então, eram uma capela e um secular prédio de Mercado e Talho, misto de açougue e central de abastecimento.

Cheiro de cultura

Agora, a fama daquela casa simples lotada de livros até o teto se alastra por toda a região, como um sedutor aroma de queijo coalho na brasa, atiçando o apetite de saber. Prova disso é que, justamente no dia da inauguração, caravanas de pelo menos quatro colégios públicos de Nova Soure e Olindina despejaram seus ávidos estudantes entre as prateleiras abarrotadas de edições tão diversas como Crime e Castigo, do russo Fiódor Dostoievski, Amendoim Torrado, do alagoinhense José Olívio, e a obra completa de João Cabral de Melo Neto, autografada pelo escritor.

“Venham ver. Isso aqui eu não acho nem na internet”, suspiravam algumas terceiranistas, com as respectivas fardas estudantis. “Onde eu acho alguma obra de Durkheim?”, indagava Ana Paula Moreira Nascimento dos Santos, aluna do último ano do ensino médio do Centro Educacional Professora Maria Ferreira da Silva, questionando sobre o mestre francês da Sociologia.

Ao lado dela, a colega Marília Aparecida de Souza folheava Que horas são?, de Roberto Schwarz, e já tinha olhos atentos para O Jogo da Amarelinha, do argentino Julio Cortázar.

Semeando idéias 

A ideia de semear novos leitores em uma escala jamais vista na região (a maior biblioteca próxima é a de Nova Soure, com pouco mais de 6 mil volumes) surgiu do filho pródigo de Paiaiá, Geraldo Moreira Prado, o Geraldo de Doli, 65 anos.

Emigrante da localidade na década de 60, ele conseguiu uma vitoriosa carreira como acadêmico nas capitais paulista e carioca e devolveu para a região os mais de 30 mil exemplares colecionados em 40 anos. Juntando com algumas doações, conseguiu dispor prateleiras e mais prateleiras de volumes cujo conteúdo apresenta ciências das mais humanas.

No sábado festivo, Geraldo colocou um chapéu de vaqueiro e recebeu os convidados (escritores, representantes de universidades, estudantes, artistas populares da terra) com uma espécie de regozijo e inquietação.

“É preciso termos consciência que o trabalho não pára aqui. Biblioteca não é cemitério de livros, isso aqui tem que ser visitado e expandido”, clamou Geraldo de Doli.

O evento se transformou em um convescote cultural com palanque armado para recitais de poesias, grupos de pífanos percorrendo casas e rodas de samba.

O repentino inchaço demográfico não foi suprido pelas duas bodegas locais e, quase instantaneamente, três ou quatro casas se transformaram em restaurantes e bares de improviso.

Segunda maior do mundo

Alçado a presidente da associação pelo tio, o estudante de letras em uma faculdade de Paripiranga, na divisa com Sergipe, José Arivaldo Prado, 25 anos, teve um dia com pouco tempo livre para a diversão. Entre apresentar a obra aos visitantes e cuidar dos detalhes da festa (“daqui a pouco chega a equipe do Fantástico para a filmagem”), ele ia comemorando os recordes daquela pequena casa com paredes geminadas aos lares paiaiaenses.

“Pelo que pesquisei na internet é a segunda maior biblioteca comunitária do mundo. Só perde para uma que fica nas proximidades de Valladolid, na Espanha, em um lugar onde moram 170 pessoas”, comemorava.

No meio do corre-corre, quando duas estudantes perguntaram onde era possível “xerocar” algumas páginas de uma revista em quadrinhos, Arivaldo foi enfático. “Aqui não é possível isso, não. Estamos seguindo as normas de direitos autorais da Biblioteca Nacional”, reprovou. 

Uma dupla de cinegrafistas soteropolitanos contratada para fazer a filmagem e transformar o pequeno documentário com testemunhos em um DVD não ficou imune ao contagiante clima de vitória da cultura sobre a aridez da ignorância. “É uma iniciativa fantástica, principalmente pelo fato de tudo ter sido feito com dinheiro próprio dele”, elogiou Adilson Reis, depois de perguntar ao repórter se não queria também gravar um depoimento.

Se tudo der certo nos planos de crescimento da associação, há um projeto de um ônibus literário, que seria feito em parceria com a empresa Itapemirim. Para uma localidade cuja frota total é de 624 veículos circulando em Nova Soure, segundo o censo de 2002, seria um reforço para o transporte de sabedoria. Tomara que a iniciativa chegue bem longe. 

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