Ao tomar conhecimento do caso entre uma delegada da Polícia Federal e um procurador da República, o personagem principal da série O Mecanismo, disponível desde 23 de março em Netflix, senta no sofá da sala, no meio de ambos ainda de pijama, coloca o vídeo com uma cena de contravenção, pede uma cervejinha: “Gostei de ver aqui a interação entre o Ministério Público e a Polícia Federal“.
Usando esse nível de sarcasmo, a obra criada por José Padilha, 50 anos (diretor de Tropa de Elite e de Narcos), conta os bastidores da Operação Lava Jato. Conta de um jeito que todo mundo é autorizado a entender.
“Esse programa é uma obra de ficção inspirada livremente em eventos reais. Personagens, situações e outros elementos foram adaptados para efeito dramático”. O aviso é prevenção a possíveis ações judiciais, mas dá para identificar, rapidamente, os políticos, empresários, juízes e policiais que ganharam homenagens na tela.
Não se trata de um ataque a esse ou aquele partido; há uma militância explícita… contra todos. Quando os registros dos autos e inquéritos se tornam diálogos e encenações fica mais fácil de captar tudo. A Operação Lava Jato deixa de ser um amontoado de denúncias abstratas e cifras inestimáveis em um telejornal e vira a sucessão de conchavos da vida real. Faz com que perceba que o roubo não é formado por episódios subjetivos, mas tem sempre a digital de gente de carne e osso.
Dá para entender claramente como é agir por conveniência, sustentar atitudes e procedimentos desonestos, por má-fé, por comodidade, por ganância – ou por “projeto de governo”.
Tudo é enquadrado como deve realmente ser: ato depravado de marginais de colarinho branco.rnrn” Ninguém combate o câncer impunemente”, repete o delegado afastado por distúrbio bipolar, Marco Ruffo. Segundo o livro que inspirou o roteiro (“Lava Jato – o juiz Sérgio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil”, do jornalista Vladimir Netto), o delegado paranaense que foi o primeiro a investigar o doleiro Alberto Youssef terminou aposentado compulsoriamente e, oficialmente, considerado maluco.
“Ninguém combate o câncer impunemente”, desabafa o sempre deprimido e exausto personagem.
Acessível pelo aplicativo de streaming em, pelo menos, 190 países, a série pode também servir para desmistificar a imagem de importantes políticos brasileiros perante a comunidade internacional. Ajuda a dar a dimensão real de uma investida contra os principais nomes da República. Coloca mais combustível na fogueira de egos do judiciário, mistura de afetos e rivalidades, arrogâncias e intrigas.
“Vamos ensinar ao MP como se monta uma denúncia”, desafia a delegada da PF, lá pelo quarto ou quinto episódio.
O juiz federal Paulo Rigo da série, sempre lacônico nos diálogos, é apontado como “muito vaidoso”. Os ternos escuros e a fisionomia de eterna impaciência criam associação imediata com o magistrado real de Curitiba
Assim como Tropa de Elite, a série explora as frases curtas, capazes de virar bordão. “O Brasil, definitivamente, não é para amadores. As ratazanas de Brasília sempre dão um jeito de parar a gente”. A constatação, tão verdadeira quanto fatalista, é de que o tumor da corrupção – seja nas variantes roubo, jeitinho, picaretagem – está em todo o organismo da sociedade brasileira: é a metástase da democracia. “O Mecanismo está em tudo, do micro ao macro. O sistema se alimenta da corrupção”.
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Significa dizer que, seja aquela atitude do secretário de estado que assina um contrato com uma banda e depois ganha um percentual do show, ou o prefeito que ordena uma obra para ganhar as futuras doações de campanha de uma empreiteira, ninguém está imune ao vírus. Nem adianta mencionar ações que beneficiam a sociedade, bilhões de investimento e geração de empregos: de boas intenções de políticos o império de satanás está cheio.
O mecanismo que rouba bilhões da Petrobras, ao mesmo tempo, concede privilégios ao doleiro Roberto Ibrahim em plena carceragem da Polícia Federal em Curitiba. Com a conversa certa e as gorjetas adequadas, é possível ter acesso a celular, promover orgia na cela, ter refeição cinco estrelas.rnrnPagando honorários bem maiores, dá para comemorar a “subida” do processo para o Supremo Tribunal Federal. “Vai todo mundo embora! Foi para o Supremo! Estamos todos livres!”, grita o diretor da Petrobrasil detido na PF. A notícia deixa o doleiro na cela vizinha cheio de motivação e com o eterno meio-riso a postos, de quem vai chafurdar novamente nos corredores palacianos, ladrilhados por pequenos e grandes favores, amizades, propinas, chantagens, canalhices. A interpretação debochada de Enrique Diaz expõe um Youssef leviano, moralmente pervertido.
Os oito episódios da primeira temporada procuram generalizar as práticas corruptas, sem distinção de partido ou de ideologias. Durante uma gravação de programa eleitoral, o candidato a vice, Samuel Thames, confidencia ao presidente João Higino: “Aquele pessoal de Goiânia não para de me ligar… os açougueiros”. A resposta do político barbudo é motivadora: “Não se preocupa com eles. É gente de confiança, pode receber tranquilamente. Eles vão somar com a gente”.
Em outro momento, o narrador comenta como o país ficou dividido entre dois lados a partir da eleição presidencial de 2014. E constata que ambos os times têm elenco de malfeitores. “Se o brasileiro resolvesse bater panela para tudo de errado que acontece no país, o carnaval não acabava nunca”. Pequenas e grandes hipocrisias se alternam na missão de corroer ainda mais o carcomido tecido social do país.
O livro-reportagem cujos direitos foram comprados para a criação da série foi a obra mais vendida do Brasil em 2016. O trabalho do jornalista Vladimir Netto (filho de Miriam Leitão) dá muita ênfase ao empenho dos policiais e procuradores pela prisão de Marcelo Odebrecht. Em O Mecanismo, Ricardo Brecht paira sobre todos os outros empresários. Ele literalmente nem senta à mesa com os membros do “clube das empreiteiras”. É como um soberano e tem o apelido de “Fidalgo”.
A segunda temporada da série foi confirmada e deve começar filmagens ainda em 2018. É possível que os espectadores aproveitem a experiência para uma rápida reflexão sobre as escolhas na eleição de outubro. “Câncer é câncer: se não extirpar logo, ele se espalha”.
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