Quando, no último domingo de fevereiro de 2019, Roma garantir o primeiro e ambicionado Oscar para a Netflix, já terá cumprido uma carreira de sucesso, aclamação e redenção. Com aspectos técnicos meticulosos e uma narrativa focada em denunciar, de maneira incômoda, vários tipos de violência masculina, vai conseguir a simpatia da maior parte dos 6 mil membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. A mensagem principal que fica latejando após os 130 minutos de filme: os homens são uns fracos.
Muito se menciona sobre o teor autobiográfico do filme que pode render o segundo Oscar ao mexicano Alfonso Cuarón (vencedor em 2013, como melhor diretor, por Gravidade). Ele mesmo procura não mencionar a perturbadora – e nada subliminar – crítica que faz à covardia dos portadores do cromossomo Y. “Roma é muito especial para mim. Muito vem de minha própria memória. É um filme sobre uma família, uma cidade, um país. Mas no fundo sobre a natureza humana”, declara, em vídeo de divulgação disponível na plataforma de streaming.
“Eu queria fazer um filme ao mesmo tempo íntimo e universal, um filme que dialogasse com todos. Eu gostaria que Roma conectasse você ao seu passado, a suas memórias”. É possível sentir o gosto de um ovo semicozido degustado na infância de alguma casa do Rio Vermelho, em Salvador, ou perceber que aquele cocô de cachorro espalhado na garagem estreita também poderia estar numa residência geminada na rua sem saída em Alagoinhas.
Solidão de ser mulher
O autorama, a ingenuidade de uma matinê no cinema, o artista do canhão humano, as roupas gotejando nos varais, tudo pode ser nostalgia ou melancolia para quem tem mais de 40 anos. Parece politicamente incorreto ver uma funcionária com metade do seu tamanho carregar malas pesadas, mas era impensável algo diferente disso nos 1970. Um tempo, também, em que pais somem das famílias sem precisar de maiores explicações.
Ou a patroa, abandonada pelo marido (que preferiu fugir com a amante para Acapulco), chega em casa bêbada e, num momento de cumplicidade com a empregada, abandonada grávida pelo namorado, admite: “Estamos sozinhas. Digam o que disserem, nós, mulheres, sempre estamos sozinhas”. É desse tipo de brutalidade que o diretor tenta enfatizar.
Bilhões em jogo
Vencedor do Leão de Ouro de Berlim e do Festival de Veneza, Roma é o indicado do México para a seleção de Melhor Filme Estrangeiro que sequer ocorreu, mas já aparece como favorito. O filme é cirúrgico na intenção de emocionar e ganhar os votos liberais dos membros da Academia. A história, México, anos 1970, poderia se passar e ser filmada no Brasil. Mas por que não é? Porque, além do talento dos envolvidos, o orçamento de 15 milhões de dólares é considerável para um filme que não tem atores consagrados internacionalmente e nem se derrama em efeitos especiais.
Não se sabe exatamente quanto o serviço de streaming pagou para ter o direito, quase exclusivo, de exibição do filme a partir de 14 de dezembro (além da plataforma, Roma também rodou em alguns circuitos independentes e salas de cinema dos EUA e México, exigência para concorrer ao Oscar). Mas é possível imaginar que foi muito mais do que o custo de produção.
Apenas para manter as temporadas da série Friends disponíveis aos clientes em 2019, Netflix deve desembolsar para a WarnerMedia em torno de 100 milhões de dólares, segundo reportagem do New York Times.
Outra informação do The Hollywood Reporter é de que a startup chegou a pagar 1 bilhão de dólares pelos direitos de 16 obras do escritor britânico Roald Dahl, autor de sucessos infantis como A Fantástica Fábrica de Chocolate, Matilda,The Gremlins, O Fantástico Senhor Raposo, O Bom Gigante Amigo. A tendência é que sejam produzidas séries baseadas em cada um destes livros. Não se sabe quanto seriam capazes de desembolsar pelo prestígio de levar um Oscar.
Travellings para o passado
O título do filme é uma alusão ao bairro Colonia Roma, onde a classe média alta se estabeleceu na Cidade do México desde os anos 1920, no qual a família de Cuaron tinha uma casa na rua Tepeji. A história acompanha, em longos travellings, os passos da calada e discreta empregada doméstica Cleo, uma das cuidadoras dos quatro filhos de uma família se desintegrando, assim como a sociedade em volta dela.
“Olha só. Gostei de estar morta”, desabafa a moça, deitada num tanque de concreto, ao lado do pequeno e sonhador Pepe (o alter ego de Cuarón), enquanto os pingos de meias secando no varal e os latidos difusos de cachorro dão a sonorização de como é o mausoléu da doméstica.
Libo, a quem o filme é dedicado, é o apelido de Liboria Rodríguez, a babá de origem indígena que começou a trabalhar na casa de Cuarón quando ele tinha apenas nove meses de vida.
Que Horas Ela Volta, o filme nacional escrito e dirigido por Anna Muylaert e protagonizado por Regina Casé, custou 4 milhões de reais e teria faturado R$6,2 milhões. Não é coincidência a história ser baseada na própria relação de Muylaert com uma empregada doméstica, mas não quando era criança.
O contraponto de Cleo é a patroa Sofia, uma mulher que consegue ser mais apaixonada pelo marido do que os quatro filhos pelo pai. São elas que restituem a dignidade de um lar. É uma cacetada no que se convencionou chamar de machismo e cultura do patriarcado, generalização de covardias masculinas que, nos anos 70 (no México, no Brasil, nos EUA, ou na Rússia), podiam ser praticadas sem o menor constrangimento.
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Samurai covarde
Na cena corajosa em que Fermín, namorado de Cleo, completamente nu, executa movimentos de artes marciais usando como bastão o suporte de cortina do banheiro do motel, termina desabafando sobre o fatalismo e as dificuldades da própria vida. Sequências depois, o herói samurai pede para ir ao banheiro durante uma sessão de cinema quando a namorada informa que, desespero dos desesperos, a menstruação está atrasada. Vai fazer xixi e não volta mais nunca com o sorvete prometido.
A violência física está disponível na ação do massacre de Corpus Christi, chamado Halconazo pelos mexicanos, que resultou na morte de 120 estudantes que protestavam pela libertação de presos políticos. Afora isso, a violência é do abandono.
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Woody Allen e paz
Não por acaso, o filme se enche de vida, de sons e de sorrisos quando as cenas se aproximam das salas de projeção. É uma autorreferência. A homenagem à sétima arte também fica evidente com todos os parâmetros técnicos são bem controlados (fotografia, edição, edição de som, direção de arte): Woody Allen mais arrojado, intenso e sentimental, com planos-sequência que dão a dimensão documental do relato. Ele também adota suas ironias, como no momento de desolação de mãe e quatro filhos em primeiro plano, o segundo plano consagra a festa de um matrimônio.
A última informação da película, após todos os créditos, é um upanishad do hinduísmo, uma espécie de comentário ao texto sagrado contido nos vedas: Shantih Shantih Shantih. É a repetição de algo como paz interior, estado mental inabalável. Cuarón quer dizer Paz, Paz, Paz. Que assim seja.