A conversa se desenrola para papos mais amenos do que técnicos. Rui Costa não é mais aquele recém empossado governador sisudo, desconfiado e levemente tenso na mais alta função executiva da Bahia, responsável hoje por um orçamento superior a R$47 bilhões. Após quatro anos e meio no cargo, tem domínio da situação, reconhece parte dos jornalistas locais pelos rostos e pela preferência ideológica de cada um (como pessoa física, e como pessoa jurídica pelo veículo que defende). Sabe trabalhar com pesos e contrapesos para neutralizar uma crítica ou potencializar um elogio. Quer ser presidente.
Estamos em um almoço na governadoria, somos 17 ou 18 jornalistas com os nomes impressos em assentos reservados, Costa na cabeceira. O visor do celular mostra que já passa das 13h de 20 de maio, catorze dias após o governador iniciar uma viagem por EUA e China. O pretexto do convite para a imprensa sentar à mesa: fazer um balanço desta excursão.
Em determinado momento, questionado sobre a relação com o prefeito de Salvador e presidente nacional do DEM, ACM Neto, responde com um sorriso: “se vocês não estão publicando nada nas manchetes, é porque vai tudo bem”. Permite dez segundos de risos e gracejos para complementar: “Aliás, você não publicam os títulos, são os editores”.
Sobre a eleição para prefeitura de Salvador, a insinuação dele é povoar a urna eletrônica com tantas fotos, nomes e números opostos ao de ACM Neto quanto forem possíveis. Quando um radialista mencionou que o presidente do Bahia, Guilherme Bellintani, seria uma “quase unanimidade”, Costa reagiu espirituoso: “explique isso para a torcida do Vitória”, provocando gargalhadas nos jornalistas. (Bellintani, ex-secretário de Neto, comenta-se, deu uma guinada para virar opção do governador. Ambos torcedores declarados do Bahia)
O economista de 56 anos, ex-vereador, ex-deputado federal, parece entender melhor os humores da mídia e isso é decisivo para o plano mais audacioso do político nascido no bairro da Liberdade, um dos mais populosos de Salvador: Rui Costa ambiciona chegar à presidência da República.
Muralha ou cortina de fumaça
Dois obstáculos sombreiam uma possível candidatura do baiano, e eles podem ser muralhas ou cortinas de fumaça (a depender de onde soprem os ventos ou se ergam os alicerces): os 47 milhões de votos de Fernando Haddad, em 2018, e o grau de influência de Lula sobre o PT em 2022. Contra o primeiro, é impossível negar, apenas torcer por uma conjunção de fatores.
Em relação ao segundo, articulação é o que não falta. Antes de viajar, Costa fez uma escala em Curitiba, visitou o ex-presidente na carceragem e saiu do encontro como um porta-voz entre outros governadores petistas. Não se sabe se a simpatia de Lula por Jaques Wagner foi transferida automaticamente para o escolhido Costa. O presidente nunca escondeu a vontade de ver José Sérgio Gabrielli saindo da presidência da Petrobras direto para o Palácio de Ondina.
Na noite de 17 de julho, depois de 1h30 de palestra na Assembleia Legislativa e outras horas de articulação política, entrevistei o ex-governador do Ceará, Ciro Gomes, candidato que teve 13,6 milhões de votos em 2018. A última pergunta na conversa que durou 31 minutos (quando a assessoria aceitara apenas 15 minutos) foi sobre qual petista ele preferia encontrar no debate de 2022.
No melhor estilo Ciro Gomes, ele foi taxativo: “Rui Costa é muito mais qualificado do que Haddad, que é uma boa pessoa. Lula escolheu para ser um poste, um pau mandado. Se Rui for candidato, vamos discutir um projeto e vamos discutir coerência é meu amigo, mas é um poste”. Bingo! Mais um político importante nacionalmente cogitava a possibilidade.
Clique e assista as declarações de Ciro Gomes:
A namoradinha
Ainda não tínhamos chegado propriamente à refeição, quando o governador submerge numa rápida digressão sobre o aspecto do jornalismo que destaca menos o conteúdo denso das entrevistas e mais o recorte capaz de atrair a atenção do grande público. Ironicamente, tinha menos de 24h que o ex-ministro (de Sarney e de FHC, que volta que o mundo dá) Luiz Carlos Bresser-Pereira escrevera no facebook que o amigo Lula estava namorando e pretendia casar. Rui Costa falou que ficou sabendo pela imprensa, sorriu e mencionou que todos têm o direito de amar.
Após narrar a viagem (o projeto VLT com as empresas BYD e MetroGreen, e as indústrias de siderurgia, cimento e energia, com a Easteel), ele mesmo deu o discurso por encerrado.
– Agora vamos para as perguntas – fáceis – de vocês, autorizou, rindo da própria ironia. No dia seguinte, o Correio apontaria que a viagem de dez dias tivera custo total de R$400 mil. Naquele momento, entretanto, o que seria coletiva se tornou um papo mais amistoso, sem inquisições enfáticas, mas com conteúdo instigante que vai chegar até a uma inesperada afirmação sobre pagamento de mensalidades em universidades públicas.
Por enquanto, Costa procura desviar dos caminhos óbvios das fantasias milagrosas, ou, na direção oposta, dos mensageiros do caos. Procura se posicionar como um pai austero, capaz de tirar da merenda do filho todo o sabor inerente aos salgadinhos ou ao chocolate ao leite, e substituir por uma salada verde com bife grelhado, só para diminuir o valor calórico e aumentar o teor nutritivo – mesmo que isso gere protestos e cara enfezada imediatamente.
Dois dias antes, eu tinha conversado com o deputado federal por São Paulo Kim Kataguiri (DEM), no modesto Congresso do Movimento Brasil Livre, realizado num hotel três estrelas, num sábado chuvoso, em Amaralina. Depois de atacar a paralisia do governo que ajudou a eleger e criticar a beligerância da colega Joice Hasselman na liderança na Câmara, o parlamentar de 23 anos resolveu mirar em Rui Costa. Disse não reconhecer projeção nacional para o mesmo se lançar presidente, e que não tinha referências sobre sua capacidade de gestão.
Clique para assistir Kim Kataguiri:
Brigar para o alto
Em política, há a máxima de que só se deve entrar em briga para o lado ou para cima. No caso de um governador, é permitido bater boca só com outro governador, ou com o presidente da República. Quem sabe um ministro? A resposta que Costa deu para mim sobre a provocação de Kataguiri foi amena, quase paternal.
Já o video divulgado como reação a uma postagem do ministro da educação Abraham Weintraub foi um petardo que parecia saído de uma esquete ácida do grupo britânico Monthy Python. Costa ironiza a fugacidade dos ocupantes da pasta e se dirige ao ministro, “se o senhor ainda estiver no cargo na semana que vem”, para depois completar: “Venha aprender gestão, fui professor de banca, posso lhe ensinar a fazer conta”, aconselhou.
Vem pra Bahia, ministro. Aqui você vai aprender a fazer conta, trabalhar e fazer gestão. pic.twitter.com/HdpnRwUkdD
— Rui Costa (@costa_rui) May 21, 2019
Tudo começara após a conversa de sobremesa com os 12 ou 13 jornalistas remanescentes naquele almoço de segunda. No meio do papo sobre como gerenciar a crise com grevistas de universidades estaduais, o gestor respondeu que escrevera, pelo direct do instagram, a uma professora, com a seguinte pergunta: “você preferia estar reivindicando aumento de salário ou reivindicando ter um emprego?”
Era a senha para dizer a dificuldade de reajuste num horizonte de finanças reduzidas. O gasto de pessoal do estado chegara no limite da responsabilidade fiscal.
Alguns já estavam na ambrosia, outros ainda mastigavam os bifes de carne do sol, quando o compenetrado e jovem correspondente da Folha de São Paulo na Bahia, João Pedro Pitombo, resolveu mencionar o impasse com os grevistas das universidades estaduais. Dias antes, o jornal tinha estampado a não execução orçamentária de R$ 110 milhões nas quatro universidades baianas, apenas nos anos de 2017 e 2018.
O governador respondeu sobre a diminuição da arrecadação durante o período da recessão econômica. E enveredou em comparações com o sistema de ensino superior em países avançados: doações, taxações de grandes fortunas… até mesmo pagamento de mensalidade. Nem todos tinham engolido a sobremesa quando ele falou que não seria contra a discussão desse tema tabu – embora não achasse que o ambiente polarizado demais fosse o mais convidativo.
Eu ainda mencionei que, possivelmente, ele enfrentaria resistências dentro do partido. “Mas sem dúvida que sim”, reagiu, com um sorriso.
A arte da guerra
É bom deixar claro. O governador mencionara o que considera injustiça: jovens oriundos de escolas particulares caras como grande contingente de aprovados em universidades estaduais, onde não pagam mais mensalidades. Costa concluiu que seria possível criar um sistema de pagamento de acordo com a renda familiar. Eu questionei se a proposta seria bem vista no Partido dos Trabalhadores. Ele disse, na cabeceira da longa mesa, “lógico que não”, e completou com um meio riso de quem sabia estar pisando em terreno minado.
Não foi um deslize durante um papo informal. Estrategistas de guerra ensinam que para ocupar grandes territórios é necessário ir tentando penetrar por regiões menores da fronteira. Retirar a gratuidade total de universidades públicas é um grande território que, jamais, será tomado em uma batalha só. E que o exército do partido dele jamais ousou ultrapassar.
Talvez por isso o jornalista Reinaldo Azevedo, conservador assumido, tenha dedicado alguns bons minutos da transmissão nacional do programa na Band News, na segunda (22/07), para expor um inesperado ponto de vista sobre como enxerga a ideologia do governador baiano. “O Rui Costa, na Europa, seria considerado um político de centro-direita. Sabe o que tem de comunista no Rui Costa? Nada, zero. Ele pode até ficar bravo com o que vou dizer: de esquerdista, tampouco”.
Além de se orgulhar do conservadorismo, Azevedo ainda se vangloria de ter criado o termo “petralha”, o que garantiu a ele o ódio eterno dos petistas. O ódio eterno durou apenas até o colunista considerar as condenações de Sérgio Moro a Lula como indevidas por falta de provas. Levas de militantes passaram a disseminar links de artigos de Reinaldo Azevedo, compartilhar vídeos histriônicos do apresentador e apontar ali, enfim, um profissional de mídia togado na neutralidade. Portanto, a dissertação dele parecia ter sido flambada em imparcialidade.
Reinaldo Azevedo: "O Rui Costa, na Europa, seria considerado um político de centro-direita. Sabe o que tem de comunista no Rui Costa? Nada, zero. Ele pode até ficar bravo com o que vou dizer: de esquerdista, tampouco". pic.twitter.com/hcgyfNoAgs
— Pablo Reis (@opabloreis) July 22, 2019
Comunicação de resultados
Há um esforço em transferir para os veículos nacionais a receptividade e o bom trânsito que o governador já ostenta com a mídia baiana: resultado de quase cinco anos de aproximação da equipe que defende a Secretaria de Comunicação. Não à toa, o secretário da pasta, André Curvello, profissional dono de assessoria de imprensa, continua aparecendo sempre ao lado do governador, valorizado como nunca nos eventos.
Antes do final do primeiro semestre, o governador da Bahia já tinha aparecido nos estúdios nacionais da Bandeirantes e da Globo News para entrevistas longas e prestigiosas. Na pauta sugerida pela equipe, aspectos de administração pública, corte de despesas e reforço em investimentos em plena época de crise econômica.
Da turma de Curvelo, nascem as mensagens para o grande público, os pontos de luz sobre aspectos da gestão, buscando traduzir para o povão o conceito de administrador austero, economizando para investir em obra. (Lembra do paizão? Ele veta a viagem de férias da família ou a contratação de outra diarista porque precisa construir um puxadinho para o filho mais velho, que vai casar).
A guerra com outros estados já foi fiscal e tributária (a disputa com o Rio Grande do Sul para instalação da Ford, em 1999, é a mais emblemática de todas), já foi geográfica, já foi por commodities. Agora é de comunicação.
Na seção Painel do Leitor, da Folha de São Paulo de 23/05, o paulista Luiz José de Souza deixou claro que o balão de ensaio, despretensioso apenas na aparência, tinha subido mais alto do que se imaginava. “Até que enfim um pensamento novo no PT, vindo do governador da Bahia, Rui Costa, sobre a possibilidade de alunos com renda maior pagarem mensalidades nas universidade públicas. Está certo. E apoio. É uma questão de bom senso e justiça social. Por que não? Paga-se colégio privado do infantil ao ensino médio e depois o estudante mais rico vai para a universidade pública, que é custeada pelos impostos pagos por todos.”
A coluna Satélite, do Correio, assinada pelo jornalista Jairo Costa Jr, destacava a frase do presidente Jair Bolsonaro: “Se começarem a cobrar 3 mil de mensalidade dos alunos vai ter fuga em massa nos cursos de graduação. Sou contra, porque o pai vai preferir pagar para o filho estudar fora”.
Briga de dois vencedores
Com a intenção de tentar jogar Rui Costa contra as esquerdas, o presidente conseguiu justamente o contrário: deixou um flanco aberto para sofrer o contra-ataque (justamente em cima da frágil pasta da educação). É como o esgrimista que, ao se esticar demais tentando atingir o rival com a ponta do sabre, deixa uma grande área aberta para sofrer o ataque. Se Rui estava ansiando pelo convite para ingressar no baile nacional, ele veio justamente da debutante que, aparentemente, não o queria na festa.
Dois meses depois, motivados pela disputa de paternidade sobre o aeroporto de Vitória da Conquista, a sinfonia de um combate iminente voltou a ressoar. Em uma oitava acima. O baiano aproveitou um vazamento de fala depreciativo aos nordestinos, uma mudança de convidados no cerimonial e anunciou que não participaria da cerimônia. Mais ainda, não liberaria a Polícia Militar para escoltar o presidente. Bolsonaro reagiu.
A oportunidade parece ter vindo a calhar. Para ambos. Como político que cresceu na dualidade, sempre à procura do inimigo como forma de antagonizar e ganhar robustez eleitoral, o capitão parece estar em busca do sparring ideal para 2022. Troca luvas com adversários aleatórios (a defesa do meio ambiente, a mídia, a Ancine), em busca do seu novo Jean Wyllys, da sua nova Maria do Rosário, do seu antigo Lula (que, volta e meia, ele insiste em citar).
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Não é novidade. Esse mesmo mecanismo já foi usado para antagonizar EUA e Rússia na Guerra Fria (e ambos cresceram), Nadal e Federer no tênis mundial (e ambos chegaram ao topo), Cristiano e Messi, Marlene e Emilinha Borba, as musas da Rádio Nacional nos anos 50 (e ambas eram amigas). Vários ramos da psicologia se dedicam a estudar o antagonismo como mecanismo de formação do ego e da personalidade: primeiro eu começo a apontar o que me incomoda tanto no outro para tentar definir – para mim e para o mundo – o que eu sou, a partir do que eu não quero ser.
Uma eventual candidatura à presidência traz consigo o escrutínio nacional sobre questões locais – e a mais contundente delas é justamente a chacina do Cabula. No início do mandato, em fevereiro de 2015, a uma semana do carnaval, o governador falou em “artilheiros na cara do gol”, sobre os policiais que mataram a tiros 12 jovens na Vila Moisés, periferia de Salvador.
Eles ganharam “absolvição sumária” da juíza substituta Marivalda Moutinho, sem qualquer oitiva, mesmo com evidências periciais de que as vítimas foram executadas com tiros de cima para baixo, a 1,5m de distância. A sentença foi posteriormente anulada para um novo julgamento, atendendo a recurso do Ministério Público da Bahia.
No ano passado, a procuradora geral da República, Raquel Dodge, reiterou o pedido do Ministério Público Federal para transferência do processo para a justiça federal, sob o argumento de que “a conduta das autoridades locais evidencia grande risco de que o caso fique sem resposta”.
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Numa possível campanha, convencer a imprensa nacional de que o resultado foi um dano colateral em uma ação policial e a declaração dos artilheiros na cara do gol foi só uma infelicidade pode ser um dos desafios. Sobre esse assunto, o pessoal já tem argumentos e experiência de sobra para garantir o controle da crise. Para ficar em metáforas futebolísticas, é capaz de tirarem de letra.
Consciente ou inconscientemente, direta ou indiretamente, Bolsonaro e a mídia colocaram o governador baiano no tabuleiro de xadrez nacional.