O #EleNão que pode fazer de Bolsonaro o novo Trump

Do século XVI ao século XIX, cerca de 10 milhões de africanos foram escravizados e importados para plantações nas Américas, lembra o doutor em História Yuval Noah Harari, no bestseller Sapiens – uma breve história da humanidade. Era uma atividade nobre, lucrativa e desempenhada por “homens de bem”.

“As empresas privadas de comércio de escravos vendiam ações nas bolsas de valores de Amsterdã, Londres e Paris. Europeus de classe média à procura de um bom investimento compravam essas ações”, escreve o professor israelense de 42 anos, no capítulo de sugestivo nome O Credo Capitalista.

Precisamos de um corte de 200 anos para percebermos que pode não ser simples coincidência o fato de a primeira pesquisa Ibope divulgada após uma reação estridente de alguns segmentos da sociedade contra o candidato a presidente Jair Bolsonaro apontar crescimento na já elevada adesão ao bolsonarismo. Será que os milhares, notadamente mulheres, que tomaram ruas de 60 cidades no Brasil contra o “coiso” ou “bozonaro” se sentiriam suficientemente ofendidos ao serem revelados como principais patrocinadores da cruzada do capitão reformado por mares nunca dantes navegados?

A consulta realizada pelo instituto no sábado e no domingo (no auge dos protestos) e divulgada nesta segunda (1°) apontou justamente o crescimento de Bolsonaro em quatro pontos percentuais e o aumento da rejeição do então principal oponente, Fernando Haddad (PT).

Talvez, os adversários não tenham percebido que o #EleNão, por mais que pareça um ataque pessoal e intransferível a determinado candidato-do-qual-não-se-pode-dizer-o-nome leva embutido um demérito e uma agressão a quem opta por votar nele. E, acreditem ou não, essas pessoas tocam suas vidas, têm famílias, precisam se alimentar e se vestir e estão aborrecidas com um monte de coisa. Não duvidem. Elas têm cérebro, capacidade de raciocínio e anseios tão legítimos de melhoria de vida quanto quem está do outro lado.

No momento em que parte da intelligentsia e da chamada militância da esquerda artístico-ideológica se unem para combater o que consideram inominável, o Brasil parece flertar com os EUA de apenas dois anos atrás. Foi na reta final da campanha americana que uma união de segmentos considerados democratas, liberais, engajados criou a resistência principalmente na internet usando hashtags provocativas, como #NeverTrump e #NastyWomen.

LEIA TAMBÉM: Que tal substituir eleições por sorteio? Parece loucura, mas estudiosos consideram a salvação da democracia

Quem lembrou bem desse contexto foi o editor chefe da revista Americas Quarterly – a mais prestigiosa publicação sobre política, economia e cultura do continente -, Brian Winter, no artigo para a Folha “Oposição a Bolsonaro repete erros dos EUA”, publicado no dia 29. (Clique aqui para ler). Enquanto todos em Manhattan e Los Angeles se tranquilizavam por seu ativismo de redes sociais, panfletário e televisionado em debates de grandes redes, o setores mais conservadores prestavam homenagem silenciosa e secreta a Donald Trump, o algoz dos artistas liberais.

“Jamais esquecerei de uma mulher que estava assistindo a um comício de Trump: questionada por um repórter de TV como ela justificava votar em um homem como aquele, respondeu: Trump pode dizer o que quiser desde que ajude meu marido a arrumar um emprego”, descreve Winter.

Com o bom olhar de quem está de fora, Winter identifica a quase completa palidez das propostas aos problemas reais que esmagam o povo brasileiro: desemprego, corrupção, violência. Enquanto vemos o desenrolar do mais agressivo e inconsistente nós contra eles (com a diferença para o futebol de que ninguém está convertendo gols e de que a partida vai continuar após o apito de 7 de outubro), o público eleitor pouco é apresentado a ações que possam garantir uma esperança de dias melhores.

Não por acaso, o eterno Luke Skywalker, Mark Hamill, e a cantora Madonna também se pronunciaram publicamente contra Bolsonaro: eles também fizeram o mesmo em relação a Trump e ganharam ovação da torcida. A questão é que achavam ser a totalidade da plateia, quando era apenas (menos da) metade.

Lógico que há diferenças importantes nos processos eleitorais brasileiro e americano. A principal delas é nosso voto ser direto, sem precisar passar por delegados de estados. A outra é que a democracia dos EUA é eminentemente bipartidária, coisa que estamos vivendo de forma inédita em um primeiro turno, desde a reabertura democrática Brasil vive um bipartidarismo de primeiro turno. Isso nunca tinha sido registrado em uma eleição presidencial com voto livre e facultado a todos os eleitores.

O principal beneficiado desta conjuntura é o Partido dos Trabalhadores, que era dado como comatoso nas eleições de 2016, após perder 60% das prefeituras sob seu comando (caindo de mais de 630 para 260 gestões), ser incinerado por denúncias de corrupção e reduzido, pelos analistas políticos, a um padrão de sigla intermediária – e pelas instâncias da justiça a uma organização criminosa. O PT aparece nas duas opções: Contra ou a favor.

Outro evidente beneficiado por esse contexto é o candidato Jair Bolsonaro, apenas quatro anos atrás considerado uma caricatura. Hoje, é o único político que parcela significativa dos eleitores consegue admitir envergando a capa preta do “eles também não”.

Para narrar o modo como a revolução agrícola nos trouxe até o ponto em que estamos hoje, Noah Harari comenta como a busca da humanidade por uma vida mais fácil foi empurrando a civilização para pontos em que ninguém havia previsto ou imaginado.

“Uma série de decisões triviais que quase sempre tinha por objetivo alimentar algumas bocas e obter um pouco de segurança teve o efeito cumulativo de forçar os antigos caçadores-coletores a passarem seus dias carregando baldes de água sob um sol abrasador”.

Tem uma série de decisões triviais em curso, elas vão determinar o rumo da história. Lá na frente, consideraremos que tudo terá sido inevitável. Teremos, todos, errado, mais uma vez.

Participe do debate pelo twitter.com/opabloreis

Compartilhe: