No quarto 923, fui o último hóspede do Bahia Othon Palace: recordações de funcionários incluídas na diária

O maior hotel até então em atividade de Salvador encerrou atividades neste domingo, levando consigo 265 quartos e mais 13 suítes com vista mar e nenhuma informação se será vendido para outro grupo. Quase 200 empregados ativos vão entregar suas carteiras de trabalho para homologação de demissão em até cinco dias. As últimas 24 horas de serviço deles foi marcada por gentilezas, profissionalismo e uma melancolia não verbalizada. Você não imagina como é vazio o olhar de uma camareira posicionada naquele quarto em que não precisava mais deixar a roupa de cama plenamente esticada.

Às 12h21 deste domingo (18), após o SMS do cartão de crédito acusar que todas as despesas haviam sido pagas, após a nota fiscal ser emitida, carimbada e grampeada, após a recusa da esfuziante recepcionista Carla em ser filmada, o gerente da recepção do Bahia Othon Palace Hotel, Bruno Abdon, anunciava: você foi literalmente o último hóspede.

Alguns turistas paulistas passaram minutos antes por aquele balcão, uma turma de excursão europeia esperou a van do receptivo, casais de faixas etárias diversas tinham se despedido de funcionários – uns aos beijos, outros com toda atenção voltada aos próprios umbigos, ops, smartphones.

Parecia tudo acabado, finalizado sem grandes dramas, comoções – mais respiradas fundas do que desabafos amargurados. Ainda viriam os 45 segundos de papo em que o mensageiro Estefano, após lembrar como ganhou, nos últimos 31 anos, os salários para criar a família e “construir a casinha”, diria que estava tudo bem. Mas não estava. Ele suspirou com os globos oculares para cima, engoliu de novo aquele discurso que viria em forma de choro e pediu licença na frente do lobby. Queria licença para atravessar seu luto.

(Todos os futuros desempregados, nessa história, não terão sobrenome. Poderiam ser qualquer um dos 1,1 milhão de baianos que, segundo a Pesquisa Nacional de Domicílios Contínua, estão desocupados no terceiro trimestre de 2018)

Um pedido de licença e o choro contido do mensageiro Estefano

O que significa ser o último hóspede da história do Othon, há algum deleite mórbido envolvido nisso? Representa o prazer de ser o marido definitivo de uma octogenária artista de cinema, após os sete divórcios dela? Ou a honra do coveiro de um ídolo da política a quem se deu o primeiro voto, 50 anos atrás? É como ser o time que se consagra campeão da terceira divisão, ou o dono do rolo de inúteis dois minutos de filmagens de A Terra em Transe? 

É o oposto de ser testemunha de uma grande empreitada, como se houvesse alguma nobreza em assistir a agonia e não a pujança de uma era. Enfim, é o que se tem para hoje. 

Não foi uma morte horrível o que aconteceu ao Othon. Foi uma despedida de quem pediu a eutanásia física, porque não queria humilhar-se, em vida, ao prematuro velório de quatro décadas de badalações na Hipopotamo´s, presenças internacionais na suíte presidencial, encontros carnavalescos na área não tão verde de seus shows com brisa marítima. 

Quando o domingo começou a amanhecer timidamente, às 4h38, nublado na janela do quarto 923, parecia que o sol também estava encabulado por anunciar uma angustiante contagem regressiva. No dia anterior, o derradeiro buffet de feijoada, das 12h30 às 15h30, teve dignidade no caldinho e no paio, e um repertório que podia alternar Zé Ramalho com Marília Mendonça. Além de orelha de porco, torresmo, couve, costelinha, bisteca, opções de saladas e sobremesas, ouvia-se Paula Lustosa e seu indomável teclado. (contatos para eventos de Paula Lustoza: 99162-6769. É zap, como ficou escrito em caneta no guardanapo). Os últimos clientes presentes ouviram os acordes de Sinônimo de Amor é Amar. 

Deuza, a garçonete em figurino e diálogos de baiana típica, tentava esconder a melancolia com um sorriso eterno – era genuíno, mas precisava ser constantemente reforçado. Com 51 anos de idade, dedicou os últimos 26 para o trabalho no gigante de Ondina. Manteve o orgulho de criar duas filhas com os vencimentos dali. No dia anterior, triste, fora consolada pelo neto Eric, de 11 anos, que mora com ela desde bebê. “Estou doentinha hoje, meu filho”.

Deuza espera conseguir, em breve, emprego como garçonete no bar da piscina de um apart-hotel

Veja a galeria de fotos do último dia de funcionamento do Bahia Othon Palace, em Salvador:

Newton Nonato, o chef executivo do restaurante Lampião, diz que já “procura possibilidades” desde o primeiro momento que soube do fechamento. “Resta ver se seremos absorvidos aqui ou em outros estados. Dizem que já tem comprador mas pra mim é fake (news) porque o comitê gestor não nos informou nada”. 

O serviço de feijoada aos sábados, assinado agora por Nonato, sempre foi uma atração compartilhada pelo Palace de Salvador, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. A partir do próximo fim de semana, só o último dos três estará aberto para os clientes. 

O Othon na Bahia é um desdobramento da primeira rede de hotéis brasileira, fundada em 1943, por Othon Lynch Bezerra de Mello, a partir da unidade do Rio de Janeiro. Foi graças ao caçula do fundador, Álvaro Bezerra de Mello, que a filial baiana surgiu, no boom, entre 1974 e 1976, que fez com que a rede duplicasse a oferta, incorporando mais de mil quartos novos.

O Palace da Bahia virou um marco nacional em 1975, precisamente em 26 de fevereiro, pela imponência à beira-mar. Era então um colosso e motivo de orgulho para a rede, que só tinha unidades no Rio e em São Paulo.

A desenhista industrial Silvana Luz Pato Gabrielli não imaginava que a ida a uma festa de 15 anos da amiga fosse garantir o passaporte dela para um evento bem mais grandioso. Como ela já tinha um vestido novo para o aniversário, foi a escolhida do pai – convidado por trabalhar no ramo hoteleiro – para ser levada à inauguração do Othon. “Lembro bem da mesa do buffet com extravagâncias que nunca tinha visto na vida: cascatas imensas de camarão, esculturas no gelo ou no queijo”, recorda, ainda embevecida. 

Melhor que ela guarde essa imagem nostálgica na cabeça. Do mesmo jeito que o clínico geral de Scarlett Johansson ou o oncologista de Reinaldo Giannechini veriam ou banalidades ou algo muito horrível no exame de ressonância magnética dos ícones de beleza, assim era investigar as entranhas do imóvel nas últimas 24 horas. Nas áreas distantes do fluxo – e dos olhos – dos hóspedes, a visão geral era de despedida. Colchões já se amontoavam nos vãos da escadaria anti-incêndio, camas de quartos desocupados já não estavam mais aos cuidados das camareiras.

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Os corredores silenciosos sussurravam como o Othon é também um afresco de inteligência dos arquitetos Luís Accioly e Paulo Casé: conseguir fazer com que todas as janelas das 280 acomodações se abram para o mar. A engenhosidade montou a disposição dos quartos em uma espécie de Y invertido, com a linha única apontando para o oceano.

A última reforma foi a chamada modernização de 2013, por ocasião da comemoração de 70 anos da rede e prevendo um grande movimento para a Copa no ano seguinte.

Imagine você, quatro décadas atrás, hospedando-se no monumento construído sobre um rochedo, com as janelas de todos os 265 apartamentos de frente para o mar azul turquesa. doze andares e treze suítes especiais convidavam os granfinos dos anos 1970 para os sonhos oceânicos. Uma coisa é certa: você não seria um mortal qualquer, daqueles que pagavam crediário das Casas Pernambucanas, se estivesse integrado ao panteão do olimpo da hotelaria na Bahia.

Desde então, o bairro mudou. O turista que desembarca em Ondina parece não ter os mesmos privilégios daquele que anda por Itapuã e se sente acariciado no rosto pelo dorso de uma mão macia, ou que se vê enlaçado pelas pernas das ruas do Rio Vermelho ou lascivamente convidado pelo calçadão afrodisíaco da Barra.

Quem transita por Ondina tem um ar de que acabou de descer de um Uber e está atrasado pra um encontro. A avenida principal, Adhemar de Barros, é debilmente iluminada, um longo trecho da orla está em obras, alguns quiosques dão um jeito cafetinesco e noir ao ambiente. No geral, Ondina enfrenta o padrão de fim de festa: exaustão extrema, seguida de uma ressaca, até despertar novamente para buscar mais uma noite eterna.

Vizinho ao Othon, os escombros do antigo Salvador Praia Hotel se sustentam apenas pelos vergalhões quase à mostra, e pelo aluguel do espaço de um imenso camarote no carnaval. Fechado e abandonado desde 2009, o imóvel virou cenário de degradação aparente na avenida Oceânica, concentração de lixo e de aedes aegypti, com móveis destruídos no interior dos quartos. Ondina é o ponto final de um dos circuitos do carnaval de rua – e isso é das melhores referências que podem ser feitas sobre o bairro atualmente. 

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Os quase 240 trabalhadores do hotel (praticamente 40 deles estão em algum tipo de licença médica ou são terceirizados) se destacam pela longevidade no serviço. O Othon virou uma empresa de relacionamento sério com seus colaboradores. Para muitos dos funcionários, a abertura do Fasano, na praça Castro Alves, significou uma esperança maior. O Sindhotéis está indicando funcionários com a experiência agregada no Othon. Acontece que o novo estabelecimento não deve precisar de mais de 70 empregados. No total.

Silvano, o barman da piscina, força um sorriso: vai voltar a morar no Rio de Janeiro

Silvano, 62 anos, barman oficial da piscina, não vai ser um desses realocados. Pretende se retirar da hotelaria. No domingo fatídico, já não podia mais aceitar pedidos de drinks a partir das 11h. Agora, pretende gozar da aposentadoria, voltando para a terra natal, o Rio de Janeiro. Ele é um dos meio-risos, misturados com a incerteza, que gera angústia, e a gratidão, que se derrama em senso de dever cumprido. “O futuro agora é só descansar”. 

Neto, o capitão-porteiro, despede-se após 25 anos. Não quer gravar entrevista. Está a ponto de derramar lágrimas – não lembra quando aconteceu ter ficado assim tão à flor da pele. É do tempo em que os programas de televisão gravados no hotel (Programa Livre com Serginho Groisman, Programa H com Luciano Huck) exigiam seguranças. Ele era um deles, sempre pronto a ser guarda-costas de alguma beldade.

A partir deste domingo, Neto passou a integrar o exército de desempregados na Bahia. Segundo a PNAD Contínua, pesquisa do IBGE, os números no estado são um porre que não passa. Pouco mais de 6 milhões estão empregados, enquanto 1.175.000 sofrem com a agonia da desocupação oficial. O índice é de 16,2% no terceiro trimestre de 2018 (o Brasil está com 11,9%). Se somados os subocupados por insuficiência de horas trabalhadas, o número sobe para 2.109.000.

Contando apenas o município Salvador, o desemprego é de 16,1%, mas crescendo a abrangência para a Região Metropolitana a dificuldade também aumenta: índice de 18,1%, um dos cinco maiores do país. O rendimento médio real habitual de quem está trabalhando na Grande Salvador é de R$2310.

Além da redução dos leitos para a hotelaria, o fechamento do Othon é como uma lápide em outro importante segmento: o de eventos corporativos. O centro de convenções vinculado ao Palace tem capacidade para atender até 2,5 mil pessoas. Desde o desabamento parcial do Centro de Convenções da Bahia, em 2016, o Othon serviu como paliativo para o ressaqueado setor na capital.

Com o Othon, ultrapassa o número de 60 estabelecimentos fechados em Salvador nos últimos três anos, de acordo com o levantamento do Conselho Baiano de Turismo. Antes dele, o mais recente sepultamento público de uma vocação soteropolitana fora o Portal da Cidade, ao lado do Terminal Rodoviário.

A queda acentuada foi notada logo após o encerramento das atividades da Copa. Em maio de 2015, a entidade contabilizava 468 hotéis, número que desabou para 407 logo em janeiro de 2017. Atualmente, a conta está em 401, com cerca de 40 mil leitos. Outro dado do CBtur é de que o Othon seria o 30º de grande porte fechado nos últimos cinco anos em Salvador.

Jamais será possível escutar histórias como a da garçonete Vera, entretendo turistas paulistas no jantar de sábado, contando como conheceu São Paulo graças a um hóspede. Ele perguntou se queria presente ou uma viagem completa. E lá ficou, no edifício 9 de julho, por uma semana às expensas do cliente atencioso.

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Foi impossível fazer reserva pelo sites especializados a poucos dias do grande encerramento, a apoteose às avessas, o velório de um pólo gerador de empregos em Salvador. Por irônico que fosse, o último fim de semana do Othon foi um dos mais movimentados. Além de um feriadão de Proclamação da República, o centro de convenções abrigou um Congresso de Infectologia Pediátrica. Quase 90% de ocupação, um dos melhores momentos da unidade. Um dos mais tristes momentos da unidade.

Fui até o balcão para garantir minha estadia. Na tarde de sexta, era atendido pelo sotaque acentuado de Bruno, não o Abdon, mas outro funcionário que parecia não estar a 24 horas de entregar o crachá para o setor de Recursos Humanos.

Antes de chegar até ele, fui reconhecido por dois seguranças como alguém que trabalha em televisão. Queriam saber o que estava fazendo ali. Contei a verdade logo de cara: quero ser o último hóspede da história do Othon em Salvador. Eles riram, eles se divertiram e até gargalharam: “esses jornalistas inventam é arte”. Poderiam até ter qualificado o interesse como excêntrico, mas talvez essa palavra não ficasse à vontade em seu vocabulário.

A tarifa de quarto mais barata no balcão era de R$ 455. Normalmente, no site booking, a tarifa da diária ficaria em R$ 210 ou 90 dólares. Mesmo assim, ao saber que eu queria ser o último hóspede, Bruno me falou que a diária ficaria em um meio termo: R$ 300 mais 5%.

-O último dia é no domingo, não é?

-Isso, encerra meio dia. Impreterivelmente.

 

Na saída do estabelecimento, o Google me perguntou, através de um aplicativo de smartphone, uma notificação: o que você achou do Bahia Hotel? O que eu achei do Bahia Hotel? Achei que haveria alguma coisa bem errada para ele precisar ser fechado. E ela aparece estampada no demonstrativo financeiro da empresa, publicado no final ano passado.

O balanço patrimonial da rede Othon aponta passivo de R$527 milhões, sobretudo em dívidas de tributos. O prejuízo no ano passado foi o maior dos últimos quatro anos deficitários: saltou de perdas de R$4,2 milhões no exercício 2016 para mais de R$40 milhões em 2017. Simultaneamente ao encerramento de Salvador, a unidade de Belo Horizonte, com 170 funcionários, também desceu as bandeiras dos mastros no domingo (18).

No único comunicado oficial sobre o assunto, em meados de outubro, a empresa foi sucinta, sem precisar dar detalhes sobre a saúde financeira (quem de nós daria em uma situação como essa?): “A Rede Othon reforça seu compromisso com a transparência das informações e comunica o fechamento de duas de suas unidades: o Bahia Othon Palace e o Belo Horizonte Othon Palace, a partir do dia 18 de novembro próximo, medida esta já informada aos seus parceiros comerciais”.

O novo Gerente Geral Corporativo de Operações do grupo, Jorge Chaves, demonstrava algum otimismo: “Conscientes da atual situação do País, continuamos acreditando na recuperação da economia e, certamente, a bandeira Othon continuará apostando no turismo nacional”.

Agora, a conta da estadia por quase 24 horas está paga. Hora de se despedir de Estefano, que começou como servente em 14 de novembro de 1987. Hoje, mensageiro de profissão, vestido com uniforme da empresa, tem no óculos de hastes pretas um escudo protegendo a fragilidade do olhar:

– Criei família, fiz minha casinha, foi tudo daqui…

-Então, esse dia 18 é histórico para você…

-Sentimento profundo, não dá nem pra falar… tchau, desculpe.

E vai se recolher na porta do lobby, ao lado da placa de bronze que marca a inauguração, em que se agradece ao grupo Bezerra de Mello “por acreditar na Bahia”, assinada pelo então governador, Antonio Carlos Magalhães. Depois disso, há pouco ou quase nada a acrescentar. A melancolia também pode ter vista para o mar. 

 

Cláudio abre uma concessão no protocolo e a rolha do espumante: último jantar

Atualização de segunda (19), às 15h33: o total de empregados efetivos do hotel estava em 184 (outros eram terceirizados, convocados para eventos, freelancers), dos quais 164 iniciaram o processo de desligamento com homologação pelo Sindihotéis. O presidente do sindicato, Almir Pereira, que os 20 restantes, por terem menos de um ano de contratação, serão desligados diretamente com a empresa. O sindicalista sustentou que um acordo firmado com o setor jurídico e o de recursos humanos do grupo Othon prevê manutenção de plano de saúde de todos por quatro meses e fornecimento de cestas básicas para as famílias por dois meses. 

Atualização de terça (20), 16h14: o conjunto dos funcionários dispensados iniciou, de forma escalonada, o processo de entregar crachás e receber documentos de nada consta. Na terça-feira, grande parte deles foi recebida na empresa por diretores. Tiveram a bonificação de R$600, referentes a dois meses de cestas básicas, além da garantia de que ficarão com plano de saúde pelos próximos seis meses. As homologações com o sindicato ficaram previstas para a semana seguinte. 

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